* enviado-especial a Sevilha

As lendas são assim. Privadas da imagem, insinuam-se ao exagero e tornam-se contos de fadas. Advertido, o Maisfutebol parte às cegas em busca da personagem de Spencer. A viagem só acaba com um toque no ombro e um aviso ameaçador: «és português? Vê lá o que escreves».

Futebolista maior num tempo em que poucos conheciam o lado bom da vida, Spencer é uma personagem icónica e emoldurada na narrativa secular do Sevilha FC. Nasceu em 1898 no bairro andaluz da Triana, com o nome de Enrique Gómez, e morreu demasiado cedo, vítima de uma apendicite.

A força do Sevilha, gritam-nos por toda a cidade, emana de homens e exemplos como o de Spencer. Rapaz simpático, apaixonado pela bola, mentiu ao pai para servir o Sevilha e escondeu-lhe toda a verdade até aos derradeiros dias da sua vida.

Luís Campuzano, autor de vários livros do clube, conta-nos que «quase cem anos» após o seu desaparecimento, Spencer continua a ser alvo da adoração de toda a cidade. «Foi um super-herói nos seus dias».

«Aos 17 anos, o pai obrigou-o a largar o futebol e o Sevilha», conta-nos o escritor. Os estudos vinham sempre em primeiro lugar no ido ano de 1915. O temor da guerra obrigava as famílias a precaver-se e as mais abastadas, como era o caso, olhavam o futebol com desdém.

Nem Portugal foi poupado: 3-0 em Sevilha

O adolescente diz que sim ao pai, aceita tudo, mas nas suas costas continua a servir o Sevilha. Inteligente, e atrevido, faz um acordo com o clube: «a partir daquele momento, o seu nome de futebolista deixava de ser Enrique Gómez e passava a ser Spencer [em honra de um inglês, atacante do Jerez FC]».

A era da comunicação vinha longe, a décadas de distância, e não foi difícil enganar o progenitor. O clube alinhou no logro. Nos jornais o interior direito passou a ser Spencer. «As crónicas da época falam de um avançado cheio de classe e elegância, diferente de todos os outros».

Lado a lado com León, Escobar, Kinké e Brand, Spencer (ou Enrique) passam a formar a «linha do medo», pelo pânico infligido aos oponentes.

Depois de um «breve período em Oviedo» para cumprir serviço militar, Spencer volta a Sevilha e conquista «tudo» o que era possível conquistar naquela altura. Fez, de resto, um jogo ao serviço da seleção de Espanha. Em Sevilha, claro, derrota Portugal por 3-0.

Do hospital para o campo e daí para o leito da morte

A tragédia, hedionda, interrompe abruptamente a ligação dourada entre jogador e clube.

«Em 1926 uma apendicite era um problema de saúde sério», sublinha Campuzano. «O Spencer foi acometido de um mal súbito, teve de ser operado e perdeu alguns jogos nesse ano».

Ainda débil, saltou da cama do hospital para o campo de jogos. O visitante chamava-se Real Madrid e já nessa altura a força andaluz ansiava usurpar o poder da capital.

Spencer entra em campo e «cai inanimado» a certa altura. «Entre a vida e a morte» é levado de volta a uma unidade de saúde e de lá já não sai.

A 14 de março de 1926, com 27 anos, o Sevilla Fútbol chora a sua morte. O óbito é declarado às dez e meia da manhã. Toda a cidade, mesmo o lado rival, sai à calle. O funeral de Spencer, ou Enrique Gómez Muñoz, é lamentado de lés a lés.

«És português? Vê lá o que escreves», lembram-se? O interlocutor - na casa dos 20 anos e profundamente tatuado - olha desconfiado e derrete-se quando lhe devolvemos a ameaça com um sorriso.

«É sobre o Spencer, conhece?»
«Spencer? A sorte do FC Porto é ele estar morto há um século».