Diz que, se escrevesse para algum jornal, teria «estórias para cada dia durante alguns anitos». Afinal, depois de 22 anos de futebol, e 322 jogos na Liga principal, Gaspar terá de, necessariamente, ficar de boca seca na hora de falar da despedida. É verdade, o veterano (39 anos) central decidiu, como se diz no meio, arrumar as botas. De vez. Houve uma ameaça no ano passado, mas ainda jogou mais uma época, no Varzim. Agora, não há volta atrás.

«Abandonar, a partir de uma certa idade, seja por uma questão física ou até mesmo mental, começa a fazer parte do dia-a-dia. No meu caso, felizmente, aconteceu no ano passado, e penso que se deveu ao desgaste físico. Estava no Sp. Covilhã», recorda para o Maisfutebol o antigo defesa de um rol de clubes como o V. Setúbal, FC Porto, Gil Vicente, P. Ferreira ou Rio Ave.

«O número de jogos, com grandes viagens de 15 em 15 dias, mais os regressos a casa, na Trofa, aliado ao facto de já não estar habituado a estar longe dos meus filhos, tudo isto levou-me a ponderar e a decidir colocar um ponto final», prossegue, antes de fazer uma pausa, para logo de seguida retomar o discurso:

«Só não o fiz devido ao pedido de um grande amigo, Vítor Pimenta, fisioterapeuta do Varzim. Acabei por agarrar esse projeto, do qual não me arrependo, pois ganhei mais amigos, e, acima de tudo, ganhei mais experiência. Como tal… este ano tinha de ser»

Confessa que ainda ponderou terminar no Tirsense, onde começou a jogar ao mais alto nível e ganhou projeção, mas não se concretizou. «Decisões desta natureza são sempre difíceis, muito difíceis, pois estamos a falar de uma actividade/profissão que foi, é, e será sempre, para a qual nasci e o que sei fazer», admite, com alguma saudade.

Faltou renovar pelo FC Porto

Ora ai está uma palavra genuinamente portuguesa e bem a propósito deste momento. «Sinceramente, acho que não vou sentir saudades. Foi um ciclo que se fechou e, assim sendo, tudo dentro dele acaba. Ficam as memórias, recordações, e a tal nostalgia. Saudade, não. Isso implicaria o fazer de novo, pois é assim que classifico a saudade», resume.

Apenas uma exceção, compreensível, por sinal: «Confesso que irei sentir falta, isso sim, de estar a jogar e ver os meus filhos na bancada e, no final, correrem pelo relvado ao meu encontro...»

Pragmático, olha para trás e vê uma carreira «bonita», naturalmente com altos e baixos, e apenas três motivos para arrependimentos. «Faço um balanço muito positivo. Não é ser humilde de mais, mas, pelas capacidades que tinha, quer físicas, técnicas e até táticas, penso que fiz o possível e o máximo com elas», sintetiza.

«Arrependo-me de ter pago a um clube para vir embora, o Ajaccio, na I Liga francesa na altura. Não prevendo o futuro, por mais um ano, e tinha mais três de contrato, ganharia uma independência financeira que me daria outra tranquilidade e até mesmo outra forma de encarar e continuar a carreira», aponta.

Outro episódio. «Também me arrependo de não ter renovado com o FC Porto. Tinha cumprido três anos, faltava-me um, e propuseram-me mais um ano, ou seja, ficaria com mais dois. Gostava de ter representado a Seleção A, mas isto são outras águas [risos].»

O melhor: ver a avenida dos Aliados cheia

Ao longo dos tais 22 anos de adrenalina futebolística, Gaspar não encontra melhor memória do que aquela primavera de 1998, quando, de dragão ao peito, sentiu o que era vencer o campeonato.

«O que guardo de melhor é, sem dúvida, a conquista do título de campeão nacional e da Taça de Portugal, e ver aquela avenida dos Aliados completamente cheia… talvez aí tenha percebido a verdadeira noção do poder do futebol. Do que é o futebol e não de ficar sentado a ver o jogo pela televisão. Isso é ver e gostar de jogar à bola, futebol é festa, alegria compartilhada com milhares de adeptos, e é estádio», desfia.

«Claro que não posso colocar de lado o arrepio de ouvir o hino nacional ao representar a seleção portuguesa [camadas jovens], realmente foi um orgulho. A subida de divisão pelo Rio Ave, o poder ter contribuído, e muito, para a solidez do clube, que hoje pode dar-se ao luxo de jogar a Liga Europa e possuir outras capacidades», acrescenta.

Mas não acabou. Ficou algo mais profundo: «O melhor, e que ninguém me vai tirar, é o olhar dos meus filhos nas bancadas, sentir o orgulho deles em mim e a felicidade que desses olhos transpirava…»

O treinador, um jogador solitário

Sobre o futuro, admite que nunca foi de fazer grandes planos. A natureza volátil do futebol assim o obrigou a pensar, mas há ideias, desejos, coisas que, certamente, irá concretizar a médio/longo prazo.

«Gostava, em tom de desafio, de saber se sou, ou não, capaz de ser treinador ou treinador-adjunto. Assim, poderei tirar a limpo se o que pensava, e penso, sobre os treinadores é verdade, ou seja, que são a continuação do jogador, mas solitários», desvenda.

Tudo isto porque, acredita, ainda pode dar muito à modalidade. «Dos 17 anos até aos 39, com jogos e jogos, treinos, clubes, treinadores, etc, etc, seria um enorme desperdício eu afastar-me assim de um dia para o outro. Penso que tenho algo a acrescentar/ensinar ao futebol português. Não sou, nunca fui, de ganhar os meus quinhentinhos e deixar passar o barco. Eu estou ou não estou, não sou de meios termos!», enfatiza. 

Alguns dos melhores momentos de Gaspar:


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