A história do Tondela repetiu-se. Depois de mais uma época em que andou sempre abaixo da linha de água, o orgulho do clube beirão trouxe-o à tona, mesmo no último suspiro do campeonato.

Com Pepa ao leme a partir do último jogo de uma primeira volta em que a equipa somava apenas 10 pontos, os «auriverdes» fizeram uma ponta final avassaladora e foram mesmo a melhor equipa das últimas seis jornadas, somando, nesse período, 15 dos 32 pontos conquistados para uma permanência conseguida ao golo.

Numa longa conversa com o Maisfutebol, o treinador revisitou os cinco meses passados em Tondela e levou-nos para dentro das conversas de balneário. Frontal e sem medo das palavras, assume erros próprios em alguns jogos e confidencia que utilizou aquilo que era dito do seu plantel para puxar pelo orgulho dos jogadores. E isso passou até por queimar, dentro do balneário, jornais com artigos de opinião em que «eram ditas coisas muito feias.»

O treinador reconhece que houve erros que não se podem repetir para que a aflição das duas últimas épocas não volte a ser vivida, num testemunho recolhido quando, de acordo com o técnico faltavam «pequenos detalhes» para confirmar a continuidade no cargo, entretanto oficialmente anunciada.  

«Quando se fala em pormenores, quem está a ler pensa: 'isso dos detalhes é uma treta, estão a falar de dinheiro'. Mas não, há outras coisas tão ou mais importantes. Aquilo que está [estava] em causa é perceber se estamos todos em sintonia para que não voltem a acontecer os erros cometidos por todos nós e que resultaram no que aconteceu ao Tondela nos últimos dois anos», apontava.

Já então, Pepa tinha quase a certeza de que esses pormenores iriam ser ultrapassados, e, por isso, não se escusou a falar do futuro do clube.

E porque o futebol também é feito de detalhes - «uma bola que bate no poste e sai, muitas vezes define o futuro de um treinador» -  há muito trabalho pela frente para evitar que o Tondela fixe a sua posição na Liga. Até agora, as duas permanências foram como bolas que bateram no poste e entraram, mas Pepa entende que é hora de o clube deixar de viver nesse limbo.

Maisfutebol –  O que não se pode repetir para evitar a aflição dos dois últimos anos?

Pepa - «Acima de tudo, temos de ser muito mais criteriosos na escolha dos jogadores. Temos de ser mais rigorosos na análise do histórico de lesões que eles tiveram nas últimas épocas. Temos de cruzar muito mais informação em relação ao carácter e personalidade dos jogadores. Temos de ter a capacidade de perceber que se o treinador é este, os jogadores têm de ser contratados para a ideia de jogo desse treinador. Um jogador pode ter feito uma boa época ali, mas se calhar não encaixa aqui. Enquanto outro pode ter feito uma má época noutro clube e encaixar bem aqui. É essa capacidade de leitura que vai criar um plantel homogéneo, competitivo e equilibrado. Um bom plantel não tem de ter grandes 'trutas', grandes nomes. Tem é de se escolher bem.»

MF – Este ano houve bons exemplos disso.

Pepa: «Sim, há o caso do Feirense, que tinha um plantel estruturado em que o Nuno [Manta Santos] arrumou bem as peças e fez um campeonato bem estruturado. O Marítimo também tinha lá as peças todas, não estavam era arrumadas, até que o Daniel [Ramos] chegou e arrumou.»

MF – Foi o que teve de fazer quando chegou a Tondela?

Pepa - «Foi diferente. Tive de adaptar-me ao que tinha: uma equipa em último, com 10 pontos e dois jogos fora terríveis – com o Sp. Braga e o Benfica. Aí, tive de me adaptar, não fiquei cego tentar impor a minha ideia. Foi perceber que, pode ser isto que eu gosto, mas não quer dizer que seja isso que vá acontecer. Por isso é que os nossos melhores jogos apareceram no fim, não só em termos de resultados, mas com as melhores exibições.»

MF – Foi preciso tempo.

Pepa: «Sim. A equipa estabilizou e as ideias foram interiorizadas. Quem anda no futebol sabe que isto não é de um dia para o outro. Para uma equipa jogar à imagem do treinador demora o seu tempo. E terminar como foi, dá um certo gozo. Ver a equipa a jogar de olhos fechados, a saber não ter bola sem entrar em desespero, a sair em transições letais e não ter medo de ter bola, que começou a aparecer com o tempo. É muito difícil estar com a corda no pescoço e conseguir não ter medo de ter bola. Por isso é que digo que os jogadores foram os principais responsáveis por isto. Eu fui apenas um que ajudou.»

MF – A seis jornadas do fim do campeonato, o Maisfutebol fez uma sondagem em que 49% dos leitores apontavam o Tondela como principal candidato à descida. Como se lida diariamente com a desconfiança?

Pepa - «Houve uma conferência de imprensa em que uma jornalista colocou a luta a dois. Eu ouvi a pergunta e ripostei: 'de certeza que é a dois?'. Estavam a dizer que se acontecesse determinado resultado nós descíamos logo e não era assim. O Moreirense é que festejava logo, mas havia outra equipa que ainda não estava a salvo. E nós sempre acreditámos.»

MF - Foi esse o mérito do treinador?

Pepa: «O Cláudio [Ramos] e outros jogadores já o disseram publicamente e aí eu admito que tive uma preponderância forte em fazê-los acreditar. E acreditarem até ao limite. Eu disse-lhes que se tivesse de ser até ao último jogo, ia ser. Se tivesse de ser por golos, era por golos. [Com o Sp. Braga] estava 2-0 e eu sentia que se tivéssemos de marcar o terceiro golo, nós marcávamos. Sentia a equipa com tudo.»

MF – Mas houve sempre essa confiança?

Pepa - «Claro que houve momentos de dar um murro na mesa e houve alturas em que teve de se virar a mesa. É como se costuma dizer: andamos com os jogadores ao colo, com festinhas e abraços, mas há alturas em que temos de os agarrar pelos colarinhos. Isso aconteceu e faz parte do crescimento.»

MF – Foi preciso chamar os jogadores à responsabilidade.

Pepa - «Quando vamos num barco e a água começa a entrar lá para dentro, ou saltamos fora, ou começamos a tirar a água. Só que mesmo a tirar a água para fora, têm de ser todos. E ali não estavam todos a fazê-lo. Uns tiravam e, se fosse preciso, outros ainda punham mais água para dentro do barco. E foi esse aclarar de ideias que teve de ser feito para colocar todos do mesmo lado, sem pensar em umbigos, mas no coletivo. Foi isso que fez a grande diferença para sermos felizes.»

MF – Recordo-me que depois da derrota com o Estoril, afirmou que a equipa tinha sido incompetente na forma como jogou.

Pepa - «Foi a equipa e fui eu. Eu não tive problemas em reconhecer que estive mal. Nesse dia eu estive mal e não ajudei a equipa.»

MF – Na entrada do Pica para avançado?

Pepa - «Fiz essa substituição muito cedo. Não é o facto de o Pica ter entrado para ponta de lança – porque isso estava trabalhado face à falta de soluções para o lugar -, mas, aos 60 minutos, a perder 0-1, não se pode entrar em desespero. Havia tempo para insistir naquilo que trabalhamos e em que acreditamos. Nos últimos 10 minutos seria mais aceitável. Mas isso faz crescer.»

MF - Uma coisa que pediu muitas vezes foi que não enterrassem o Tondela vivo. Sentir que estavam a fazer isso também deu força?

Pepa - «Deu. E teve de se pegar em tudo. Eu cheguei a queimar jornais no balneário. Queimei artigos de opinião à frente dos jogadores, para eles verem aquilo que diziam de nós lá fora. Eram coisas feias, desde que o plantel do Tondela não tem qualidade, que era impossível acontecer o milagre do ano passado porque a equipa era muito melhor em termos individuais do que a deste ano. E a única resposta que podíamos dar era dentro de campo. E isso revoltou e deu-nos força para irmos fazer pela vida. E conseguimos.»

MF - Qual foi o momento mais complicado da época?

Pepa - «A semana da derrota com Estoril em casa e o jogo seguinte, com o V. Guimarães, em que fizemos uma 1.ª parte horrível, mas que na 2.ª já reagimos. E na semana que se seguiu foi o momento de grande viragem. Íamos ter dois jogos em casa, em que se não fizéssemos seis pontos ia ser muito complicado. E foi aí que aconteceram os episódios de confronto positivo. Em que, frontalmente, dissemos 'quem quer, quer, quem não quer, saia daqui'. Se não fosse com vinte e tal jogadores, íamos com 16, era com o que fosse, mas tínhamos de ir todos juntos. Faltava-nos chama e a partir daí... Com o Rio Ave entrámos em campo e, nos primeiros 20 minutos eles nem perceberam o que aconteceu. Foi um vendaval.»

MF – Depois veio o Nacional, num duelo de aflitos.

Pepa - «Sim, aí não foi igual, porque era um jogo em que quem perdesse ficava com a vida muito complicada. Mas demos uma resposta tremenda. No Bessa, bloqueámos. Não foi falta de atitude, houve um bloqueio geral. Depois, foi o que foi: um jogo tremendo em casa com o V. Setúbal – a saber sofrer mesmo com menos um; em Arouca foi brutal, e com o Sp. Braga, que é o Sp. Braga, também foi assim.»

MF – No banco, qual foi o jogo em que sofreu mais?

Pepa - «(hesita) Talvez com o FC Porto e em Moreira [de Cónegos].»

MF – Porquê?

Pepa – «No Porto, senti-me impotente para ajudar a equipa, com tudo o que aconteceu e que nos marcou. Porque estávamos bem, e duas ou três decisões rebentaram-nos por completo. Um grande penalidade, uma expulsão, aquilo matou-nos. Senti-me incapacitado para ajudar a equipa e a minha preocupação foi não perder os jogadores. Tentar acalmá-los e ajudá-los a vir à terra.»

MF – E em Moreira de Cónegos?

Pepa - «Também foi muito complicado. Já entrámos com jogadores com menos ritmo competitivo [Cláudio Ramos e Murillo estavam castigados]. Mas eles estavam a fazer um jogo extraordinário, a equipa estava bem, a ganhar 1-0 e a obrigar o Moreirense a só esticar o jogo. Só que, de repente, sai o Miguel [Cardoso] lesionado logo aos 15 minutos, depois sai o Fernando [Ferreira], também lesionado. Entra o Pité e até ele teve de sair. Ou seja, queimámos três substituições com jogadores lesionados, o que nos limitou muito, num jogo em que a derrota nos matava. Empatámos, mas tínhamos e fizemos tudo para ganhar. E aí, pensei: o que é falta acontecer-nos? Mas é futebol.»

MF – E a equipa partiu para uma ponta final de grande nível.

Pepa - «Imaginem o que é estar uma semana a trabalhar, sabendo que se perdermos o próximo jogo descemos de divisão. Isso aconteceu-nos três vezes. Foram três matchpoints. E a frase 'se perdermos, descemos' era impensável entrar ali. Não havia hipótese. Nós sabíamos, sabemos fazer contas. Mas o discurso passava por ganhar. Ganhar, ganhar, ganhar, ganhar, ganhar. Seja contra quem for. Foi essa mentalidade ganhadora, de entrega, juntamente com a falta de opções, era ganhar ou ganhar.»

MF – O que mudou nessas semanas?

Pepa - «A análise aos adversários. Eram muito mais sintéticas. Focámo-nos na nossa equipa e era para ganhar a quem viesse. Abordávamos a estratégia do adversário, claro, mas até nisso a informação foi diminuindo. Já estávamos em abril e temos de saber lidar com a cabeça dos jogadores, depois de uma época desgastante. E eles conhecem, não era preciso estar a massacrá-los com isso. Era focar na nossa equipa. E isso fez muita diferença.»

MF – O facto de o Moreirense – que era a equipa mais próxima na classificação – ir pontuando todas as semanas nunca intranquilizou o Tondela?

Pepa - «Não digo que não. Infelizmente, nós estávamos numa posição em que tínhamos de olhar para os outros. Porque eles estavam a uma distância considerável e nós sabíamos que não tínhamos margem e não podíamos deixá-los fugir. E assim foi, fizemos tudo por tudo por ir encurtando e a verdade é que, depois, ficámos a seis pontos do P. Ferreira e do Desp. Chaves [na verdade, o Tondela ficou a seis pontos dos flavienses e a quatro dos pacenses]. Em jeito de brincadeira, eu disse que acreditava que se houvesse mais jornadas apanhávamos essas equipas.»

Leia também:

«Na festa do Feirense abri uma garrafa de champanhe em casa, sozinho»

«Sou contra a possibilidade de treinar dois clubes numa época»