Há muito, muito tempo, num país muito distante, Oliver Tsubasa recebeu a bola ainda no seu meio campo defensivo. Era um dia como tantos outros na escola de Newpi, o que é o mesmo que dizer que não havia aulas, mas futebol. O sonho de qualquer petiz, no fundo.
 
Tsubasa fez, então, o que melhor sabia: dominou, virou-se para o miolo contrário, começou a correr e a pensar na vida. Era sempre assim. Cada vez que pegava na bola era como se Tsubasa estivesse para morrer: a vida passava-lhe à frente dos olhos.
 
Esse pormenor fazia dele o mais cerebral jogador de futebol de todos os tempos. Não só sabia exatamente onde colocar a bola, fosse num colega ou na baliza, como sabia que atitude deveria tomar, mais tarde, para fazer as pazes com a namorada Sanae ou o amigo Misaki. Zidane pensava o futebol como poucos. Tsubasa ia mais longe: pensava o futebol e a vida.
 
E corria. Muito. Tinha em si os genes de um Paul Tergat a palmilhar a relva de um campo que mais parecia um halfpipe com balizas. Fizeram um estudo sobre quando mediria aquele campo – a isso eu chamo tempo bem gasto – e apontaram para 18 km. Um bocadinho maior do que o Adelino Ribeiro Novo, portanto.
 
Indiferente, Tsubasa lá ia, de bola no pé e pensamento sabe-se lá onde. Aos cinco minutos de episódio, haveria de chegar o primeiro adversário que ele dribla com facilidade. E ainda dizem que é no Brasil que dão espaço em demasia aos jogadores. Já foram ao Japão?
 
A tática da equipa de Tsubasa não entraria nos padrões de Guardiola, mas ninguém poderia dizer que não resultava. Bola no artista e dois a correr ao lado. Um «kick and rush» sem a parte do «kick».
 
Na outra baliza, que haveria de começar a ser vista por Tsubasa quase no final do episódio, estava Ken Wakashimazu. Um tipo especial que corria para a esquerda para ganhar lanço no poste sempre que alguém rematava para a direita. E defendia. Contrariava as intenções do adversário com a mesma astúcia que as leis da física.
 
Talvez só Genzo (ou Benji) se lhe pudesse comparar. Era igualmente um extraordinário guarda-redes, o único em toda a história do futebol que tinha estilo com chapéu na cabeça. Faça chuva ou faça sol; seja dia ou seja noite.
 
Havia ainda outro guarda-redes icónico, de quem, confesso, já não me lembro do nome. Como num qualquer direto interrompido por problemas técnicos, para mim ficou o essencial: era grande e gordo. Em plena TV, a velha máxima da rua: o gordo vai à baliza.
 
Voltando a Tsubasa, sabia ele que aquele poderia ser o golo decisivo. Não sabia se haveria de usar o «chuto concentrado» ou o «chuto triangular» que os gémeos de dentes para fora lhe tinham ensinado. Isso e a «Catapulta».
 
Enquanto decidia o remate e ficava com a área mais perto lembrou-se de Mark Lenders. Bom jogador, feitio difícil. O homem do «chuto tigre» que treinava a furar ondas do mar. O único japonês moreno que Tsubasa alguma vez tinha visto.
 
Recordações, apenas. Um último drible e a decisão estava tomada. Telepaticamente Misaki dizia-lhe: « Chuta!». Ishisaki anuía: « Tu consegues!». Tsubasa rematava à espera de ver a bola entrar e ficar a rodar na rede, suspensa, alguns segundos. Os mesmos que o estádio inteiro precisava para perceber que a bola tinha passado a linha e era golo e podia festejar.
 
Entrou? Isso é matéria para o próximo episódio. Que poderia muito bem ser inteiramente passado durante um salto de mais de dois metros de Tsubasa para ganhar uma bola de cabeça. Ou a discutir a melhor forma de contrariar a regra do fora-de-jogo (juro que houve um episódio só sobre isso).
 
O dado a reter é que enquanto a doutrina se divide entre Nakata ou Honda para melhor jogador japonês de sempre, eu (e muitos dos que viram televisão no início dos anos 90) não tenho dúvidas: Oliver Tsubasa. A lenda.
 


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