Já lá vão quase sessenta recordações em forma de «Cartão de memória». Sinto, caro leitor, que já nos conhecemos há muito tempo. Já existe uma certa intimidade e, portanto, acho que já posso contar a história da minha primeira vez.
 
Para ser sincero, já foi há tanto tempo que não faço ideia se existia aquele nervoso miudinho que dizem ser habitual. Havia entusiasmo, isso sim. Uma vontade gigante de experimentar e perceber se era tão bom como todos diziam. Lembro-me que foi.
 
Surpreendente em algumas partes. Mas plenamente satisfatório. E inesquecível. Afinal, quem não recorda a primeira vez que entrou num estádio de futebol?
 
Cresci numa família com muita gente ligada ao futebol, ainda mais a gostar daquela arte. Tão ou mais importante, cresci num mundo sem torniquetes. Um mundo em que uma criança não pagava para entrar num estádio. Em que a boa vontade do porteiro, o tal que rasgava o cantinho do bilhete sem precisar de leitor de código de barras, contornava a mais rígida das normas.
 
Ir ao futebol tornou-se habitual. Aquele jogo é o primeiro que me lembro e, portanto, inesquecível.
 
Recordo o resultado, o marcador do único golo. Lembro-me, até, que o vi mal porque um adulto se levantou à minha frente. Lembro-me do cheiro da relva que ainda hoje me cativa. De outros cheiros: das castanhas à entrada, dos cigarros que fumavam ao lado. Eu, um não fumador, ainda hoje acho que o tabaco tem um cheiro diferente quando fumado num estádio. Parece menos mau.
 
Lembro, com sorriso, que acreditei por uns tempos que a baliza que ficava mais perto de mim era bem mais pequena do que a do outro lado. As noções de perspetiva não eram o meu forte.
 
Por fim, recordo o melhor. As pessoas. O meu avô, que me levou, e os dois senhores de quem já não sei o nome mas que passaram a fazer parte da minha rotina.
 
O meu avô era aquilo a que se chamava, na altura, um sócio de cadeira. O lugar anual do início dos anos 90. Ficava sempre no mesmo sítio e tinha sempre a mesma companhia. Dois senhores, já de idade avançada, que com ele conversavam o jogo todo. Um deles, não me esqueço, tinha uma catchphrase a cada entrada sobre um jogador da sua equipa. «E não mostra cartão…». Era um loop interminável, por mais suave que fosse a rasteira.
 
Passados tantos anos, lembrar-me destas pessoas é a prova de quão especial é o futebol. Não sei (nunca soube?) os nomes deles ou de onde eram. Mas não esqueço as caras. Eram os amigos do estádio. Que estavam lá aos domingos, de 15 em 15 dias.
 
Quando deixou de ir ao futebol, o meu avô chegou a comentar: «Nunca mais lá apareci, aqueles homens devem achar que eu morri…». Porque as equipas continuam a entrar em campo, a relva continuava verde, a bola continuava a rolar. Na essência, o futebol não mudou. O que muda são as pessoas.
 
Lembrar a minha primeira vez num estádio é muito mais do que recordar o golo, a festa ou as castanhas. É pensar naquelas pessoas que, durante anos, ali se sentaram a meu lado e nunca mais vi. Com quem trocava opiniões, que me satisfaziam as curiosidades, que me ensinavam algo mais sobre aquele mundo fascinante.
 
A falência da condição humana diz-me que é muito provável que aquelas pessoas, como o meu avô, já cá não estejam. Eu, que não sei o nome, nem onde moram, presto-lhes aqui homenagem.

E sei que, noutros estádios, noutros países, noutros continentes, outros pequenos grupos se reúnem quinzenalmente, entre piadas e bitaites, sem saber nomes, nem moradas, nem condição social, em prol de uma paixão comum: o futebol.
 
Há coisa mais bonita do que esta?

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