PLAY é um espaço semanal de partilha, sugestão e crítica. O futebol espelhado no cinema, na música, na literatura. Outros mundos, o mesmo ponto de partida. Ideias soltas, filmes e livros que foram perdendo a vez na fila de espera. PLAY.

SLOW MOTION:

«AMATEUR FOOTBALL: A FORGOTTEN PASSION?» - de Daniel Husband
«Fazer o saco». A expressão acompanha-nos, a cada jogo, a cada treino. Não raras vezes, para trás fica qualquer coisa. A toalha, as meias de encher, muito de longe a longe até uma chuteira. Cabeças no ar, diria a minha avó.

Começa nesse momento o compromisso do futebolista amador. Somos os únicos responsáveis pelo nosso equipamento, nós e a pobre da máquina de lavar cá de casa.

Faça chuva, vento ou granizo [sim, já aconteceu], o entusiasmo não esmorece. A entrada no balneário, a piada do colega do lado, o comentário despropositado, a azia de uns e a boa disposição de outros.   
  
Nada se compara ao ambiente de um vestiário de uma equipa amadora de futebol, acreditem. Seja pelo cheiro a bálsamo - também conhecido por «ratax» -, seja pela confusão que rapidamente se instala e muito dificilmente se dissipa.

Um verdadeiro santuário de nódoas negras, entorses por debelar, feridas em carne viva e músculos entorpecidos pelo jogo (ou treino) anterior. O futebolista amador, salvo raríssimas exceções, vai até ao limite e só abranda se houver uma perna fraturada ou uma rotura muscular de dimensões assustadoras.

Não existe departamento médico, muito menos sede administrativa. A estrutura da SAD tem o escritório dentro de uma mala, no compartimento ao lado do spray milagroso, dos anti-inflamatórios, das ligaduras e pomadas.

Eu, futebolista amador, me confesso. E aponto o dedo aos profissionais: o vosso sofrimento tem um limite muito mais sensível do que o nosso.

Tudo isto tem um encanto redobrado em dia de jogo. A divulgação da convocatória por mensagem, os atrasos habituais no ponto de concentração, a caravana automóvel rumo a um campo pelado perdido em freguesias de nomes impronunciáveis.

Quem joga, quem não joga? O «João» não está hoje, o filho ficou doente; o «Manel» está sem carro, não chega a tempo; o «Luís» deitou-se tarde e não ouviu o despertador. Acertos no onze inicial, descompressão e palhaçada.

Mas só até ao silêncio sepulcral: a hora da palestra é sagrada. E ai de quem ousa interromper o mister.

Desenhos táticos, posicionamento nas bolas paradas, abordagem escolhida para o jogo. Nisto somos tão sérios como os milionários do Real Madrid.

A bola começa a saltar e nada mais importa. Naqueles 90 minutos, a vida resume-se a este abraço coletivo, a este «raça, raça, raça», a esta paixão no seu estado mais puro. Pelo jogo, pelo clube representado.

Este artigo é dedicado a todos os futebolistas amadores do nosso país. E a todos os políticos que são capazes de perceber a relevância das instituições desportivas sem fins lucrativos.

Os «contabilistas» autárquicos, mais interessados em aparentar a seriedade do que em exercê-la, já fizeram muito mal ao desporto amador. Vejam este documentário e percebam a beleza inerente ao amar de forma desinteressada.

 

PS: «The Imitation Game» - de Morten Tyldum.
A interpretação de Benedict Cumberbatch (habituem-se a este ator de nome intrincado) é inatacável. A história verídica de Alan Turing chega ao grande ecrã e é filmada com rigor, humor e ambição.

Turing foi um matemático (cientista, analista, filósofo…) inglês, responsável pela criação de uma máquina capaz de decifrar a Enigma, a estrutura por onde passavam todas as comunicações das forças nazis durante a II Guerra Mundial.

Mas Turing foi muito mais do que um génio. Foi um ser humano frágil, atormentado por um amor perdido na adolescência e por não poder assumir publicamente a sua homossexualidade, numa altura em que as leis britânicas vetavam todos os comportamentos «inadequados».

O norueguês Morten Tyldum estreia-se na realização de uma grande produção. E aguenta-se. Atenção a este filme na noite dos Oscars. Tem oito nomeações e grandes possibilidades de ser um dos vencedores da gala.  

 


SOUNDCHECK:

«UNDERDOG» - dos Kasabian.

A banda de Leicester não faz músicas sobre futebol, mas cede os direitos de várias das suas composições ao desporto-rei. «Fire», por exemplo, já se mistura com a própria história recente da Premier League.

Desta vez sugiro-vos este Underdog. Se algum dia for a um estádio britânico é muito provável que dê por si a entoar o refrão. Aqui vai ele:   

«Kill me if you dare, hold my head up everywhere
Keep myself right on this train
I'm the underdog, live my life on a lullaby
Keep myself riding on this train»
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PS: «Atlas» - dos Real Estate.
Senhoras e senhores, eis um dos grandes álbuns de 2014. A banda de New Jersey supera o que oferecera nos dois primeiros trabalhos e atinge a maturidade artística em plena harmonia.

Este rock suave, sempre dedilhado em notas leves e agradáveis, é uma excelente opção de escuta em dias mais sombrios. Desentorpece, alegra, sugere luz e otimismo.

A voz de Martin Courtney e a guitarra de Matt Mondanile têm uma relação telepática. São unas, inseparáveis e fazem música simples, mas eloquente. Música que é um tributo à condição suburbana da banda: é fácil imaginar um cenário com vivendas de madeira, jardins bem tratados e os raios do sol a baterem nas janelas.




VIRAR A PÁGINA:

«O BERRO IMPRESSO DAS MANCHETES» - de Nelson Rodrigues

As saudades que eu tinha de ler Nelson Rodrigues. Este livro foi lançado em 2007 e junta as crónicas escritas pelo génio brasileiro entre 1955 e 1958 na revista Manchete Esportiva. É um regresso ao jornalismo em forma de poesia, ao sentido de humor refinado e à crítica com tanto de viperina como de ingénua.

Nelson fala de Mazzola, Garrincha, Pelé, Vavá, do seu Fluminense, do rival Flamengo, do irmão Mário, do Maracanã, enfim, fala do que bem lhe apetece e cria uma viagem única ao futebol brasileiro da década de 50. O livro não está à venda em Portugal, mas é possível comprá-lo através da internet. Não percam isto.

«Corria o ano de 1911. Vejam vocês: 1911! O bigode do Kaiser estava, então, em plena vigência. Mata Hari, com um seio só, ateava paixões e suicídios; e as mulheres, aqui e alhures, usavam umas ancas imensas e intransportáveis. Aliás, diga-se de passagem: é impossível não ter uma funda nostalgia dos quadris anteriores à Primeira Grande Guerra. Uma menina de 14 anos para atravessar uma porta tinha que se pôr de perfil. Convenhamos: – grande época! grande época!»

 

«PLAY» é um espaço de opinião/sugestão do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Pode indicar-lhe outros filmes, músicas e/ou livros através do e-mail pcunha@mediacapital.pt. Siga-o no Twitter.