Naquele dia em que Pedro Raurich ficou gravemente ferido em combate, ele e a sua mulher Paquita abandonaram de vez a aldeia de Martorell para procurarem refúgio em França. O seu neto, Pierre (já com o nome afrancesado do avô), viria a nascer já em Marselha, cidade de nascimento também de Yazid, filho de magrebinos.

Os avós de Pierre chegaram a França em 1938. Eram catalães que combateram as tropas falangistas de Franco durante a Guerra Civil Espanhola e que tiveram de resistir às agruras da II Guerra Mundial antes de se reencontrarem com a paz.

Os pais de Yazid recomeçaram em 1953 a vida no novo país, um ano antes de eclodir a guerra pela independência da Argélia.

As histórias de Pierre e Yazid têm muito, muito tempo, mas podiam ter acontecido nos nossos dias. França acolheu estas duas famílias, vindas em momentos e com motivações diferentes, bem antes de os dois rapazes nascerem. A pátria da “liberdade, igualdade e fraternidade” acolheu-as sem saber que Pierre seria o nome do meio de Éric Cantona e Yazid o de Zinedine Zidane.

Quando chegaram, os pais de Zidane tentaram estabelecer-se sem sucesso em Saint-Denis. À procura de emprego, fixaram-se quase 800 quilómetros a Sul, no bairro marselhês de La Castellane, um pedaço do Magreb feito em torres de apartamentos.

Décadas mais tarde, Zidane regressaria àquele subúrbio de Paris para viver um sucesso muito maior do que aquele a que os seus pais aspiravam.

Zizou liderava aquela seleção de uma França multicultural que tocaria no céu quando ele fez dois golos no Stade de France, na final do Mundial contra o Brasil, na noite mais memorável do futebol francês – em que Cantona foi o grande ausente.

No mesmo Stade de France agora alvo de terroristas islâmicos, onde na passada sexta-feira havia gente consternada sobre o relvado, antes de se erguer de novo e à saída cantar “A Marselhesa”.

Cantavam como quem não tem medo; como quem se levantará tantas vezes quantas forem preciso para defender a liberdade, a igualdade e a fraternidade em que a república alicerçou as suas bases. Cantavam como Cantona falou, quando há semanas se disponibilizou para acolher refugiados, também eles vítimas do terror, tão refugiados quanto os seus avós.

Não fosse o futebol e Pierre seria apenas mais um neto de refugiados e Yazid mais um filho de emigrantes. Hoje, eles são símbolos maiores de uma França que por ser multicultural é mais respeitada em todo o mundo.

Nem todos podem ser Cantona e Zidane. Há quem como Albert Camus tenha chegado apenas a jogar à baliza, até ser traído pela tuberculose no início da década de 1930.

Escritor, filósofo, jornalista, pied-noir (nome dado aos franceses nascidos na Argélia), Camus, vencedor do Nobel da Literatura em 1957, regressava à sua juventude e à baliza do Racing Universitário de Argel sempre que queria sintetizar o mundo, proclamando para a posteridade: «Tudo quanto sei com maior certeza sobre a moral e as obrigações dos homens devo-o ao futebol.»
 
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«Geraldinos & Arquibaldos» é um espaço de crónica quinzenal da autoria do jornalista Sérgio Pires. O título é inspirado na designação dada pelo jornalista e escritor brasileiro Nelson Rodrigues, que distinguia os adeptos do Maracanã entre o povo da geral e a burguesia da arquibancada.