Era um Sporting campeão e embalado por vitórias na Liga. Era um leão que tinha caído na pré-eliminatória da Champions, eliminado pelo Inter de Milão, e que tinha ficado com o sabor amargo de uma vitória moral que teria de ser vingada no campeonato.

Era uma equipa que tinha trucidado o Leixões na Supertaça Portuguesa, pelo meio. Era a máquina de Laszlo Boloni a defender o título conquistado na época anterior, com um plantel cheio de internacionais e com dois rapazes de talento inegável. Tão inegável que hoje um deles conta duas Bolas de Ouro. Era uma equipa que não perdia há 28 jogos consecutivos no campeonato. Por isso, o que aconteceu ao Sporting naquela noite em Paços de Ferreira não foi coisa menor. Foi um «atropelo» futebolístico sobre um campeão na Mata Real, palco que os leões visitam neste sábado. Marcaram Carlos Carneiro (33 min) e Mauro, Bruno Mauro (36, 55 e 90 min - na foto, no Belenenses).



Duas vitórias prometedoras sobre Académica e Santa Clara deixaram
o Sporting na linha da frente do campeonato, enquanto se esperava que Mário Jardel se resolvesse na luta com os demónios
 que o afligiam e que João Vieira Pinto cumprisse a suspensão vinda dos incidentes do Portugal-Coreia do Sul, no Mundial 2002. Mas na noite de 16 de setembro de 2002, foi o próprio leão que foi assombrado. O resultado foi histórico. 

A Ficha de Jogo e as notas do Maisfutebol dessa noite

Entre 2013/14 e 1978/79 só há uma derrota pior no campeonato: frente ao rival Benfica, na Luz, por 5-0 na última temporada ali referida. Um 4-0 é, assim, uma coisa rara para o emblema de Alvalade nos jogos de liga. Em mais de 30 anos, aconteceu apenas três vezes: frente ao Rio Ave (2003/04), frente ao Penafiel (1987/88) e esta, na Mata Real em 2002/03.

Dos três grandes, os verdes e brancos são também aqueles que têm mais dificuldades no estádio do Paços. «O Sporting só venceu uma vez na Mata Real nos últimos cinco anos», lembrou o treinador Leonardo Jardim, nesta quinta-feira. Benfica e FC Porto têm registos bem melhores do que seis vitórias, cinco derrotas e quatro empates. 

A crónica do P. Ferreira-Sporting, 4-0

Ainda que Jardim alerte para perigos pacenses, a probabilidade de uma repetição daquela noite de 2002 é reduzida. Basta o currículo do leão e a forma atual da equipa para uma conclusão simples. O que só torna aquele 16 de setembro ainda mais intrigante. Tão intrigante que o herói pacense não mais repetiu a proeza na I Liga: marcar três golos numa só partida. 

 

«Preparámos o jogo do modo habitual, embora quando se joga com um grande se tenha de ter cuidado com outros detalhes que não existem nos outros adversários. Mas para nós foi tudo igual, porque as equipas do mister Mota [na foto acima] não jogam para defender.» Mário Sérgio estava em campo naquele dia. Mas não se recorda sequer do miúdo que estava no banco do adversário.

Os destaques do jogo no Maisfutebol

«Foi um jogo que realmente ficou na história, foi marcante, lembro-me do Ricardo Quaresma, mas não tinha noção de que ele estava lá. Olhe, também ficou para a história, que o Cristiano Ronaldo já levou 4-0 do Paços de Ferreira», sorriu o defesa do APOEL Nicósia, para logo de seguida fazer questão de sublinhar que o dizia em jeito de brincadeira. Ronaldo não entrou em campo nesse dia e adiou a estreia por duas semanas.

Longe de Portugal e «disfarçado» de gestor de conta de um banco em Luanda anda o super-herói dessa noite: Bruno Mauro. À MF Total, o avançado angolano contou que apesar de uma preparação normal durante a semana, essa vitória estrondosa começou a ser construída no tempo.

«No futebol existe a tal mística e de época para época ela vai passando, nós fizemos o que fizemos, mas em épocas anteriores já havia uma referência: “Este é o nosso campinho e temos de dar o máximo.”»

Antes de falar dele, Bruno Mauro fala nos outros. «O Paços era uma equipa extremamente organizada e tirava proveito impressionante da Mata Real. Tinha um excelente meio-campo, bons centrais e uma boa linha avançada, para além do José Mota, que é um excelente condutor de homens.»

Mas então, um homem que marca três golos ao campeão nacional em título não se deve vangloriar pelo feito? «Se quer que lhe diga, dos golos que marquei nessa noite, o mais bonito foi a assistência para o 1-0 do meu amigo Carlos Carneiro, que marcou de cabeça ao bom estilo dele.»

O vídeo dos golos

Mauro está no banco em Luanda e até nos revela que atende dois clientes. Mas começa a descrever o lance como se voltasse à Mata Real naquela noite. «É uma excelente jogada de envolvimento. O Zé Nando sobe pelo terreno e faz um passe à esquerda, onde estou. Recebo e vejo o Carlos a entrar na área. Cruzei e ele cabeceou para o golo. Sempre vibrei mais com assistências do que com os golos.»

O próprio avançado tem noção que aquele jogo «foi diferente, até pela equipa que o Sporting tinha». E também tem noção histórica.

«Foi manchete nos jornais e não é normal ter um Bruno Mauro na primeira página, a jogar no Paços. Foi uma noite bem conseguida e não gostaria de a reduzir à sorte porque o Paços ganhou a outras grandes equipas nessa época.» Apesar dos números fora, os registos em casa não mentem e mostram um triunfo sobre o FC Porto e outro sobre o Boavista, o vice-campeão.

Depois desse 4-0, Bruno Mauro partiu em 2003 para o Belenenses. Esteve ainda no Estrela da Amadora, Ovarense, Santa Clara e Acharnaikos, da Grécia. O último clube que lhe é conhecido é o Onisilos, do Chipre. Hoje em Nicósia, Mário Sérgio chegou ao final dessa época de 2002/03 e mudou-se precisamente para o Sporting. Uma mudança igual à de Vítor, por exemplo, no início desta temporada.

«Na minha ótica, nenhum jogador é contratado por uma partida. Tive bons anos no Paços e com certeza já me estavam a seguir. Esse jogo pode ter ajudado, mas creio que foi pelo conjunto de partidas», conta Mário Sérgio (na foto na Naval 1º de Maio).



O relvado de Alvalade é um local onde passou pouco tempo, porém. Sem minutos, Mário Sérgio acabou por sair do Sporting. Dez anos depois, consegue explicar porquê.

«Foi um passo que, se calhar, não estava à espera. Nem preparado. Acusei um pouco a pressão e saí prejudicado. É diferente porque quando se está num clube pequeno tem-se pouco protagonismo. Num clube grande há outros bons jogadores. Mas há exemplos de futebolistas que chegam e impõem-se logo. Não nos podemos estar a lamentar.»

As outras consequências dessa noite de 16 de setembro ecoaram pela temporada. O Paços arrancou para a melhor classificação da história [batida com o terceiro lugar da época passada], enquanto o Sporting, confundido também pelo problema Jardel, acabou em terceiro, a 27 pontos do FC Porto de José Mourinho e a 16 do vice-Benfica.

Cristiano Ronaldo poucas vezes mais foi suplente na vida e Ricardo Quaresma aventurou-se mais tarde no Barcelona. Voltaria a Portugal para ser campeão e meter-se em novos mundos outra vez.

Já o Sporting mantém uma ferida aberta. Naquele 16 de setembro de 2002, aconteceu a primeira derrota do último Sporting campeão. O estrondo do 4-0 foi tão grande que ainda hoje ecoa por aí…