A Taça Libertadores da América, a Taça do Brasil. O Palmeiras é de Abel Ferreira e Abel continuará por São Paulo nos próximos tempos. Mas, casa é casa, e o treinador aproveitou as férias no Norte de Portugal para colocar a conversa em dia e responder durante mais de uma hora a questões de jornalistas porugueses. 

Divertido, confiante, sem preconceitos, Abel a tudo respondeu e pelo meio deixou sair algumas histórias nunca antes contadas sobre o seu percurso como treinador.

A questões do Maisfutebol, o treinador revelou o momento em que decidiu ser treinador e desabafou sobre as dificuldades nos primeiros tempos nos juniores do Sporting: no treino de estreia mandou um jogador para o banho mais cedo por lhe ter «faltado ao respeito» e algum tempo depois viu os centrais titulares a «pegarem-se à porrada». 
 

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Maisfutebol – Em que momento da sua carreira decidiu que queria ser treinador?

Abel Ferreira – Tive um treinador que nos fazia muitas perguntas nas palestras, o Jesualdo Ferreira. ‘Nós vamos jogar assim, como acham que devemos pressionar?’, dizia ele. E tive dois que me puseram a dar as palestras: o Jesualdo e o Paulo Bento. Eles falavam e no final pediam-me para dar umas palavras. Uma vez fomos jogar a Coimbra, o Paulo falou e depois pediu-me para acabar. Bem, aquela viagem de sair do meu lugar para falar aos meus colegas… eu tremia por todo o lado. ‘Amigos, vamos passar das ações aos atos e bom jogo a todos’ (risos). Foi só o que consegui dizer. O Jesualdo marcou-me muito e quando apanhei o Paulo Bento comecei a pensar que queria ser treinador. Posso dizer-vos que a partir dessa época com o Jesualdo comecei a gravar tudo o que era do treino num gravador. ‘Hoje houve porrada, como é que o treinador reagiu? Hoje o treino foi 6 x 4 a meio-campo, como é que correu?’. No fundo, comecei a pensar no que faria e não faria enquanto treinador. E as peças começaram a colar.

MF – O Gelson Martins contou ao Maisfutebol que o Abel foi o treinador que mais gostou de ter na formação. Disse, aliás, que consigo jogou a lateral direito e a lateral esquerdo sem reclamar. Como reage ao receber elogios de alguém que já trabalhou consigo há tanto tempo?

P – Gosto muito de trocar os jogadores de posições nos treinos. Uma vez meti o Wilson Eduardo a ponta-de-lança no Dragão e o presidente do Sp. Braga ficou doente comigo. Mesmo no Palmeiras acho importante fazer isso. Um defesa jogar a extremo, um avançado jogar a médio. Isso faz com que eles percebam o que o colega dessa posição sente durante o jogo. Um exemplo: um defesa que faz um passe na queima ao médio, vai perceber melhor a forma como deve entregar a bola ao colega, sendo ele a recebê-la. O Gelson… quando penso no Gelson e nessa equipa chego a esta conclusão: por muito fraco que eu fosse, era impossível não ser campeão com essa equipa de juniores. A minha aventura como treinador começou logo mandando um jogador para o banho, o Gael Etock. Faltou-me ao respeito. Pouco depois, o Tiago Ilori e o Edgar Ié começaram à porrada no treino. ‘E agora o que faço?’ Íamos jogar contra o Sp. Braga do Artur Jorge e tinha duas opções: ou excluía os dois centrais titulares que se tinham pegado à porrada ou aposto em outros. Só um deles é que pediu desculpa.

P – O que fez?

AF – Ficaram os dois de fora e empatámos contra o Sp. Braga. Um deles pediu desculpa e voltou mais à frente, o outro nunca mais jogou. E fomos campeões. O Gelson foi fantástico nessa época. Jogou a lateral direito, lateral esquerdo, médio. Num jogo contra o Benfica, o Ivan Cavaleiro estava a dar cabo do Ricardo Tavares [lateral esquerdo do Sporting] e meti o Gelson a jogar nessa posição. O Gelson estava no banco e entrou. Sempre tive uma relação muito próxima, mas de muito respeito com os jogadores. Essa geração era fortíssima: Esgaio, Palhinha, João Mário, Rúben Semedo, Podence, Gelson. Fiz muito por eles e eles muito por mim, era recíproco. Agradeço as palavras do Gelson, que muito me ajudou.

P – Tem motivação e coragem para voltar ao Brasil com um contexto tão difícil? A pandemia, a política… Não era mais fácil aceitar outro convite?

AF – Quem segue a minha carreira percebe que sou um treinador de projeto. Ainda não fui despedido à séria, os clubes ganharam sempre alguma coisa comigo. O Sp. Braga e o PAOK não me devem nada e eu não lhes devo nada a eles. Os jogadores e os treinadores não escolhem para onde vão, mas podem dizer que não. Gosto de estar onde querem que eu esteja e onde me sinto bem. Tenho contrato com o Palmeiras, gostam de mim, sinto-me bem e é lá que continuarei. Trago sempre algo na lapela e tenho uma pulseira com preto e branco, porque para mim todas as pessoas são todas iguais. Não aceito estigmas, luto pela igualdade.

P – Quando chegou ao Palmeiras teve dificuldades em passar a sua mensagem?

AF – O bom treinador é aquele que consegue ensinar o treinador a ler o jogo. Só aos 27 anos comecei a entender o jogo. Comecei a perceber que era mais do que marcar o Quaresma, eu marcar o Simão ou eu marcar o Derlei. Eu era lateral direito, só queria saber quem era o extremo e depois, para mim, se ele não fizesse golos e tocasse pouco na bola o meu trabalho estava feito. E o futebol é muito mais do que isso. Uma das minhas grandes preocupações na formação foi ensinar o jogo, na equipa B a mesma coisa, no Sp. Braga, no PAOK e no Palmeiras a mesma coisa. O que é ensinar o jogo? Perceber onde está a bola, onde estão os espaços, se temos de ir por dentro ou por fora. Estamos sempre nas mãos dos nossos jogadores. O futebol é tão mágico que, independentemente do estudo e do treino, podemos ver o nosso extremo esquerdo na direita e o extremo direito a lembrar-se de ir para a área e decidir uma final da Libertadores. Os treinadores querem controlar tudo, querem tornar o futebol menos aleatório, mas sabemos que o jogo e os jogadores têm vida própria. Dá-me um prazer enorme sentir que os jogadores estão a perceber o que pretendo. As equipas que têm mais rendimento são as que têm capacidade de perceber o que o jogo está a pedir.