«A maior falácia é a que diz que o jogo é, acima de tudo, uma questão de vitórias. Não é nada do género. O jogo é uma questão de glória»

A frase é de Danny Blanchflower, que sabia do que estava a falar. Médio criativo, líder do Tottenham nas décadas de 50 e 60, Blanchflower teve um quinhão de vitórias mais do que respeitável. Mas foi a excelência, e não o currículo recheado - um campeonato, duas taças de Inglaterra, uma Taça das Taças e dois prémios de jogador do ano em Inglaterra (repararam na ordem?) - que o fez ser escolhido pelo «The Times» em 2009, 16 anos depois da sua morte, como o melhor jogador da história do Tottenham.

Blanchflower é talvez um dos poucos grandes jogadores a tornar-se mais famoso por uma frase do que pelo registo das suas proezas em campo. Também por isso, após pendurar as botas em 1964, com 38 anos, teve uma segunda carreira de sucesso, como colunista e comentador televisivo. Sem desprimor por uma visão de jogo elogiada por todos os cronistas da época, é justo que assim seja. Aparentemente simples, a ideia por detrás da frase é tão ambiciosa como o lampejo que passou pela cabeça de Van Basten, três segundos antes de este cruzamento de Muhren lhe aterrar no ponto G do pé direito:



Haverá quem pense que nesse momento Van Basten pensou apenas em marcar, ou em ser campeão da Europa, ou em fazer a bola sobrevoar Dassaev, o melhor guarda-redes mundial dessa década. Não serei eu a desmenti-los. Mas também não serei eu a explicar-lhes a diferença entre esse golo e a chouriçada com que Bierhoff, a partir dos 1.27, resolveu aqui a final de 1996, diante do futuro terceiro guarda-redes do Deportivo da Corunha. Lembro só que ambos ganharam o mesmo, mas só um teve direito à glória.



Para mim, é muito claro que quem, como Van Basten, chega àquela encruzilhada da vida, não está ali para marcar apenas um golo ou ganhar apenas um jogo, por mais final que fosse. Quem se decide a desenhar assim o impossível só pode ser movido a fome de glória - e convém não esquecer que os jogos anteriores tinham feito de Van Basten o homem mais confiante do Mundo, durante esse mês de junho.

Foi do golo de Van Basten que me lembrei, ao ver a frase de Blanchflower («It's about glory») parcialmente inscrita nas bancadas de White Hart Lane, durante o Tottenham-Man. United deste domingo. Parecia estranhamente deslocada ali, num jogo alimentado a erros e temores, entre duas equipas feridas, sem qualquer capacidade de apontar à glória. Até que Sandro decidiu resgatar o jogo à mediocridade e ao esquecimento, com um pontapé demasiado bom para pertencer àquele filme. Não vencedor, mas glorioso.



O golo de Van Basten e a frase de Blanchflower também me visitam, com frequência, a propósito da «obsessão ridícula» (Arsène Wenger dixit) com a Bola de Ouro, cada vez mais animada por interesses comerciais. Porque, para adeptos sem memória e sem sentido histórico, este ruído sem tino ameaça misturar irremediavelmente o essencial (a glória) e o acessório. 

Quando se resume os méritos de Messi e Ronaldo à contagem das Bolas de Ouro que ganharam ou deviam ter ganho - e quando se faz depender os respetivos estatutos de contabilidades eleitorais - está a cometer-se o sacrilégio de arrumá-los na mesma categoria de outros antigos vencedores do prémio. De tantos jogadores apenas talentosos, que tiveram na Bola de Ouro o ponto mais alto das respetivas carreiras: Omar Sivori, Florian Albert, Dennis Law, Allan Simonsen, Matthias Sammer, Michael Owen ou Pavel Nedved, entre outros.

É Wenger, outra vez, a pôr o dedo na ferida, lembrando que a obsessão com os prémios individuais «faz mal ao futebol», um mundo em que as galas de smoking não podem ser mais do que uma nota de rodapé na história das temporadas. E é Wenger, ainda, a fixar para Messi a única fasquia aceitável para o seu talento: «Se ganhar o Mundial, pode reclamar o título de melhor de sempre». Porque, como os adeptos com memória, Wenger tem bem claro um sistema de valores em que uma Bola de Ouro não vale uma meia-final de um Mundial; duas Bolas de Ouro não valem duas Liga dos Campeões no currículo; e quatro Bolas de Ouro não valem um título de campeão do Mundo.

Acima de tudo, uma Bola de Ouro não vale este ruído desconcertante, nem está perto de valer a exibição de Cristiano Ronaldo em Solna. Porque a história do futebol é feita de jogadores banais, que são esquecidos rapidamente; dos bons, que ganham algo; e dos muito bons, como Ribéry, que ganham muita coisa.  Depois, há os imortais, como Maradona, Pelé, Di Stefano, Cruijff e poucos mais. Quantas Bolas de Ouro ganharam entre eles? E quem se importa com isso? Messi e Cristiano Ronaldo, que ainda não estão lá, têm o dever de reclamar para si esse estatuto. Para eles, a ambição tem de ir além da vontade de ganhar: passa pelo direito à imortalidade. E este conquista-se com glória, não com Bolas de Ouro: nunca vi um futebolista ser glorioso com o smoking.vestido.