* Enviado-especial do Maisfutebol aos Jogos Olímpicos
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Nasceu no Funchal, tem 44 anos e dispensa apresentações. Falar de Jogos Olímpicos, pelo menos no último quarto de século, implica falar de João Rodrigues.

O velejador estreou-se na maior prova desportiva do planeta em 1992, aqui ao lado em Barcelona, e vai representar pela sétima edição consecutiva as cores de Portugal. Agora na classe de windsurf.

Veterano das águas e das pranchas, João Rodrigues é desafiado pelo Maisfutebol a escolher uma história sobre cada uma das Olimpíadas vividas. O atleta aceita o repto e eleva a fasquia: «conto seis histórias e acrescento mais uma, já a lançar os Jogos do Rio de Janeiro».

Tudo isto no dia em que João recebeu de Marcelo Rebelo de Sousa a bandeira de Portugal. O velejador será o porta estandarte da comitiva nacional na Cerimónia de Abertura.

De Barcelona a Londres, um extraordinário percurso desportivo, e de vida. João Rodrigues, diletante aventureiro, contumaz sonhador, 50 medalhas em competições internacionais.

Ei-lo, de mão dada com o Maisfutebol no sonho carioca.

BARCELONA, 1992 - Vela, Classe Iechner: 23º lugar

«Cerimónia de Abertura. Perto de dez mil atletas reunidos no Estádio Olímpico em Montjuic. E então, uma bandeira gigante com o símbolo dos Jogos começa a ser desenrolada sobre as nossas cabeças. Milhares de braços aguentam-na. Sou um deles e só consigo sorrir. Mas ao meu lado, um atleta da Irlanda - era fácil identificá-los - chorava compulsivamente. Não era de tristeza. Era de emoção, de alegria, mas também de fascínio. Fiquei ali especado a olhar para ele até que as perguntas começaram a surgir. O que é que eu estaria ali a fazer? Que caminho havia eu percorrido para ali chegar? Tinha-me verdadeiramente empenhado? Era mesmo aquilo que eu queria fazer?

Nos dias seguintes percebi a dimensão que os Jogos têm. Não fazia ideia, confesso. Foi tudo tão intenso, tão grandioso, tão absolutamente inesquecível…! Eu só queria velejar numa prancha à vela e, de repente, estava ali. Na mais fantástica festa do desporto que se poderia imaginar. Oh, e eu não imaginava. É que não imaginava mesmo!»

ATLANTA, 1996 – Vela, Classe Mistral: 7º lugar

«A história para Atlanta começa quando regressava de Barcelona, numa daquelas máquinas infernais que davam pelo nome de UMM. Parámos na fronteira e enquanto o meu treinador tratava da burocracia, saltei para o teto do jipe e pus-me a contemplar as estrelas. E nesse momento, nesse preciso momento, decidi que queria ir a Atlanta. Mas não queria simplesmente lá ir, como que por acidente, como havia acontecido para Barcelona. Não, queria fazer da ida a Atlanta um desafio. Dois, aliás. Queria acabar o curso no Técnico - tinha ainda três anos pela frente - e queria qualificar-me para Atlanta.

Quando cheguei ao apartamento em Lisboa, o primeiro ato simbólico foi pegar no televisor e… guardá-lo no armário! Nos três anos seguintes não sairia de lá a caixa mágica. E a minha vida tornou-se extremamente simples. Estudava e velejava. 365 dias por ano. Sempre totalmente dedicado a cada uma destas atividades, aparentemente antagónicas. E então a magia foi paulatinamente acontecendo. Afinal, a carreira académica era compatível com a carreira desportiva. Afinal, uma não estava em conflito permanente com a outra. Não, pelo contrário. Ajudavam-se! Faces da mesma moeda.

Foram quatro anos incríveis. E, no final, todas as peças do puzzle foram encaixando, como se o universo tivesse decidido dar uma ajudinha. Entreguei o meu trabalho de fim de curso em Janeiro de 1996 e qualifiquei-me para os JO de Atlanta uns meses depois. Um dos melhores períodos da minha vida e que me leva, ainda hoje, a sentar-me nas escadarias do Pavilhão Central do IST, contemplar a Fonte Luminosa ao fundo e agradecer ter tido a oportunidade de viver aquele sonho».

SYDNEY, 2000 – Vela, Classe Mistral: 18º lugar

«Se não vivesse em Portugal, vivia em Sydney - ok, e Auckland também - onde gostaria de assentar arraiais. Não é só por ser uma baía lindíssima. Nem por ter águas absolutamente límpidas, apesar das 180 mil almas que diariamente as cruzam a caminho do centro. Nem sequer pelo clima, que apesar da força do sol no verão, é bastante agradável ao longo do ano. É, acima de tudo, pela cultura náutica que o povo australiano tem!

No período que antecedeu os JO naquela cidade, não treinávamos às quartas-feiras à tarde, nem aos sábados. Porquê? Porque era tal a quantidade de embarcações à vela que nesses dias se encontravam na baía, que ficava literalmente impossível fazer um trajeto linear. Desde os mais rápidos veleiros que existiam na altura, até ao pequeno iate familiar, de tudo de encontrava na água nesses dias!

Ah sim, e velejar tendo como pano de fundo a Ópera de Sydney, não é com certeza todos os dias que acontece!»

ATENAS, 2004 – Vela, Classe Mistral: 6º lugar

«Atenas é que era! Era nestes JO, aos 32 anitos, que iria acabar a minha carreira desportiva. Na altura achava que já era hora de ganhar juízo e de me dedicar a algo que me garantisse futuro. Afinal, não havia velejadores com mais de 32 anos a competir naquela classe e os meus colegas engenheiros ganhavam nome na praça.

Assim, vivi Atenas como se fossem os meus derradeiros dias como atleta Olímpico. Foram os meus melhores JO, aqueles de onde saí com a noção de que podia fazer excelentes resultados nesta competição em particular. Quis a sorte que tal não se traduzisse numa medalha, mas quando terminaram os JO e fui dormir, adormeci sossegado. Estava em paz comigo mesmo».

PEQUIM, 2008 – Vela, Classe RSX: 11º lugar

«Um ano depois de ter abandonado a carreira desportiva, fiz a asneira de comprar o equipamento Olímpico selecionado para os Jogos Olímpicos na China. Era algo totalmente novo, que procurava o melhor de dois mundos dentro do windsurf. Surgiu uma prancha inacreditavelmente exigente, mas ao mesmo tempo, muito, muito divertida.

Não demorou muito até me aperceber que a fogueira que tinha cá dentro ainda ardia. E assim, um ano e meio depois de Atenas, comecei de novo. Do zero. Saí da Madeira e tornei-me um cidadão do mundo. Vivi um pouco por todo o lado, onde quer que houvesse mar, vento e amigos com quem treinar. O Brasil, mais precisamente Búzios, passou a ser a minha segunda casa e, ali, reencontrei-me uma e outra vez.

Três meses antes dos JO de Pequim, nos mares de Qingdao, local onde se desenrolariam as provas de vela - Pequim não tem mar - a água desapareceu por baixo de um manto de algas verdes! Dias houve em que simplesmente não conseguíamos encontrar um buraco suficientemente grande naquele mar de algas para fazer uma pequena regata. Pensámos que aqueles JO estariam condenados ao fracasso, pelo menos no que concerne à vela. E isso talvez fosse verdade num outro país. Mas não na china.

150 000, sim, leu bem, 150 mil pessoas apareceram do nada com a missão de recolher as algas! Embarcadas em outros tantos milhares de pequenas embarcações de madeira, com ruidosos motores a dois tempos, limparam tudo! Tudo! E só para terem a certeza de que não haveria nem uma pequena alga nos diversos campos de regatas, ainda implementaram à volta destes, uma barreira com 30 quilómetros de extensão. Posso garantir. Não encontrámos nem vestígios!»

LONDRES, 2012 – Vela, Classe RSX: 14º lugar

«Fui enganado nesta campanha! É verdade. Em 2009, o nosso Mundial foi realizado em Weymouth, cidade a sul de Londres, e palco das regatas de vela Olímpica. Passei quase todo o verão naquela pitoresca cidade e foi um período incrível. Deu sol quase todos os dias, tivemos sempre algum vento, a temperatura foi tão agradável que nos esquecemos de que estávamos em Inglaterra.

Entusiasmado, fiz-me sócio de um clube local, aluguei um apartamento por quatro anos e, nos anos seguintes, a partir de Maio, mudava-me de armas e bagagens para Weymouth. E então percebi aquela pancada dos ingleses pelos boletins meteorológicos. E ainda mais o ditado: ‘Acha que o tempo não está bom? Espere uma hora. Vai piorar!’ De ano para ano, à medida que nos aproximávamos dos JO, o tempo foi mostrando porque os súbditos de Sua Majestade gostam tanto da Madeira ou do Algarve. Que culminou com o mês de Junho ou Julho de 2012 (já não me recordo exatamente de qual foi o mês) mais chuvoso dos últimos 30 anos! Foi um dilúvio constante! Até os locais não suportavam ver mais o céu pesado cor de chumbo. Todos os dias! Mesmo nos JO, em pleno Agosto, mal vimos o sol. Pelo que foi até com uma certa alegria que desembarquei no ferry em Santander, terminados os JO, e mergulhei no inferno tórrido da planície que cobre as cidades de Burgos, Valladolid ou Salamanca».

RIO DE JANEIRO, 2016 – Vela, Classe Windsurf: ?

«Sobre o Rio não tenho ainda histórias, mas achei engraçada esta que me aconteceu recentemente:

A boleia.

Mal estacionei para abastecer, vi pelo canto do olho um vulto aproximar-se. Quis ignorar, confesso, mas o vulto materializou-se na minha janela. Contrariado, lá abri o vidro, para dar de caras com uma cara simpática, de um individuo de mochila às costas e que perguntou-me: ‘Vai para Portugal?’ Fiquei a olhar para ele durante uns segundos, enquanto o meu cérebro processava todas as hipóteses. ‘Vou...’

Dez minutos depois, arrancamos. Mal o conseguia ver, por causa da prancha, que estava dentro da carrinha. Estoniano, vinha à boleia há três dias. Queria chegar ao Cabo da Roca, o lugar mais ocidental da Europa. Porquê (?), perguntei-lhe eu. Porque sim.

Olhou para a prancha, para as velas, mastros e retrancas e a páginas tantas, falou-se de Jogos Olímpicos. Ele ficou entusiasmado perante a hipótese, na altura, de me qualificar para o Rio. E conhecia velejadores estonianos que haviam estado nos JO.

Disse-me o nome e, sem querer, escorreguei e disse-lhe que não me lembrava dele em Londres.

- Mas estiveste nos JO de Londres?, perguntou-me.

- Sim.

- Uau, fantástico! E vais tentar ir novamente. Estiveste na cerimónia de abertura?

- Sim, foi incrível!

- Os ingleses fizeram um excelente trabalho. Ainda para mais, depois do sucesso que foi Pequim! Lembras-te da cerimónia de abertura? Foi o maior espetáculo que alguma vez vi!

- Pois foi! Mas não fui lá. Só fui à de encerramento.

- Encerramento? Mas espera lá, foste a Pequim??

- Pois é, também fui a esses JO.

- Isso é lindo! Já foste a dois JO e ainda vais tentar ir a uns terceiros!!!

- Vamos ver.

- Já não me lembro quem é que foi da Estónia nesses JO. Mas sei que na Grécia, não correu nada bem. Foi último...

- Lamento! Mas já lá ter estado, não foi nada mal. Além disso, em Atenas, o vento esteve muito estranho. E um calor! Imagino que na Estónia não tenham calor assim!?

- Mas então, também foste aos JO em 2004?

- Sim.

- E antes?

- Sidney, Atlanta e Barcelona…

Deitou o olho por baixo da prancha, olhou bem para mim, e perguntou:

- Que idade tens?

- 44.

Silêncio. Muito silêncio…

Deixei-o no aeroporto de Lisboa. Agradeceu, desejou-me boa sorte e pediu-me para escrever o nome num papel.

Quando arranquei, fiquei com a nítida sensação de que ele acreditava ter passado umas quantas horas com um aldrabão!»