À hora marcada, lá está Dário Essugo. Uma mão dada ao pai, a outra a segurar o bendito saco. Camisola, calções, meias, chuteiras, a toalha e o shampoo. Sábado, 13h30, estação de metro do Senhor Roubado, Odivelas.

O dia é de nervos. Borboletas na barriga, a adrenalina embrulhada em ansiedade. 'Falta muito, pai?', falta sempre demasiado tempo para jogar à bola quando somos pequenos.

Em Fanhões, a 20 quilómetros de distância, está já tudo à espera de Dário. E Dário não chega, teima em não chegar para jogar o primeiro torneio enquanto futebolista federado. Verão de 2013, a quase oito anos de distância do dia em que o menino Essugo faz história no Sporting, ao estrear-se na equipa A com 16 anos.

Os meninos do UDR Santa Maria estão já em campo. Olham uns para os outros: 'E o Dário?'. O Dário está à espera da boleia que não chega. Uma mão dada aos dedos apertados do pai, a outra a segurar o saco fechado.

«O primeiro torneio do Dário não começou bem. Esqueci-me dele», recorda António Martins, primeiro treinador do adolescente-prodígio do Sporting. «Eu trabalhava noutro ramo e nesse sábado tive uma manhã muito agitada. Marquei com o pai dele e com o Dário à uma e meia no Senhor Roubado, em Odivelas, porque a família dele vive aí perto, mas fui para o jogo e não os levei.»

Dário com a equipa do UDR Santa Maria-Geração Benfica, aos oito anos

António desenvolve uma ligação especial ao menino. Torna-se no mentor desportivo e justifica a alcunha de ‘padrinho’. Tudo acaba bem, com uma boleia desenrascada à última da hora. À boa pressa portuguesa.

Os miúdos eram divididos em dois carros, o meu e o do meu adjunto. Quando chegámos ao campo vimos que nos faltava um jogador. Era o Dário. Fui à bancada e pedi a um amigo meu, o Max, para ir a Odivelas busca-lo no meu carro. As mudanças eram automáticas, ele ainda me ligou a dizer que não o conseguia conduzir, mas depois lá apareceu com o Dário. A tempo de jogar.»

Dário joga, rapidamente se torna no líder do UDR Santa Maria-Geração Benfica [a escola que tinha um acordo com o pequeno clube] e no final da época salta para o Sporting. Mas a nossa história ainda agora está a começar e nem sequer fizemos as apresentações.

Dário é o filho mais novo do senhor João Cassia Essugo, operário de construção civil, e da dona Florinda Luís, funcionária de um restaurante. Cresce na zona de Odivelas mais próxima do campo do UDR Santa Maria e frequenta a Escola EB1 de Santo António, em Alvalade.

Dário (ao meio) com o irmão Danilo e um primo

Duas vezes o melhor jogador do Torneio McDonalds

Carlos Alvarez é o professor de educação-física que todos sonhamos ter. Adora futebol e adora ver os alunos a jogar futebol. Em 2012, solicitado pela Junta de Freguesia de Alvalade, forma duas equipas para o Torneio Infantil da McDonalds, a realizar no relvado do Inatel de Lisboa.

«Eu era professor na Escola EB1 de Santo António e Dário era aluno de uma outra turma. Nos intervalos, nos pátios da escola, comecei a observar quem jogava bem à bola porque a escola recebeu o convite jogar nesse torneio», conta ao Maisfutebol.

«Havia dezenas de equipas e fazia-se a réplica do Mundial ou do Europeu, dependendo do ano. Criei duas equipas e a iniciativa teve enorme adesão, recebi muitos miúdos. A condição para entrarem no torneio foi simples: durante um mês e meio, depois do horário escolar, tinham de participar em dois treinos semanais.»

Dário (segundo à esquerda, em cima) com a equipa da escola treinada por Carlos Alvarez

No campo de piso duro da escola, Dário é um dos que mais se destaca. Por esses dias, o rapaz já treina e joga pelo UDR Santa Maria-Geração Benfica, mas ainda tem tempo e energia para acumular outro desafio.

Só havia uma luz muito ténue para iluminar o pátio, treinávamos praticamente às escuras. Os pais do Dário foram bastante disponíveis e nunca impuseram nenhuma proibição. Tive o cuidado de falar com o sr. João e a dona Florinda, porque não sabia se com o clube e a escola não seriam demasiados treinos. ‘Se não houver problemas nas notas da escola, se não houver cansaço e o Dário andar feliz, por nós não há problema nenhum’. E assim o Dário ficou connosco.»

A coisa corre tão bem que Dário recebe o troféu de melhor jogador do torneio nos anos de 2013 e 2014. O nome do menino Essugo começa a ganhar alguma fama no meio do futebol infantil. Nada que surpreenda o mister Carlos Alvarez.

«Toda a gente queria estar em campo ao lado do Dário: ‘mister, mister, tire-me a mim se quiser, não tire o Dário’. Na segunda edição ganhámos o torneio e o nível já era muito competitivo, porque os clubes – Benfica, Belenenses, Sporting – inscreveram as equipas de benjamins. O Dário destacou-se muito. Eu e o meu colega olhávamos um para o outro e dizíamos ‘este miúdo vai ter de dar jogador’.»

Dário e Carlos abraçados a festejar no relvado do Inatel

Não se enganam. Oito anos depois, Dário está perto de se sagrar campeão nacional da I Liga. Passando diretamente dos iniciados para os seniores.

«Olho para ele como um número-6, apesar de gostar de ter a bola e de aparecer até em zonas de finalização. O Dário marcou alguns golos nesses torneios de futebol de sete. Nessa altura ele começou a ser observado por muitos clubes. Ouvi falar de Benfica, Sporting, Belenenses, FC Porto, todos percebemos que ele teria uma carreira boa se quisesse. E ele queria muito», resume Carlos Alvarez, um amigo ainda muito presente.

«Trocámos mensagens depois da estreia. ‘Que duas semanas tiveste, Dário!’ Eu nem me queria acreditar quando o vi no banco e depois a aquecer para entrar. Estava em casa e fiquei doido, doido. Não foi assim há tanto tempo que o treinei nos torneios da McDonalds. Não me surpreenderam aquelas lágrimas no final. Ele fez muito bem em descomprimir, foi um raro momento genuíno de futebol. Era demasiada emoção para um menino de 16 anos.»

Promessa cumprida: domingo de manhã, a camisola de Dário chega a Loures

Fita puxada atrás. Estação do Senhor Roubado – torneio em Fanhões – primeira época no UDR Santa Maria-Geração Benfica. António Martins é o homem do leme e aquele que ficará para sempre assinalado a letras de ouro na carreira de Dário: ‘o meu primeiro treinador’.

«O Dário apareceu-me lá num sábado de manhã, para um treino de captação. Mal começou a jogar, vimos logo que era distinto. Era diferente dos outros meninos», confidencia o ‘padrinho’ adotivo do médio lançado por Rúben Amorim frente ao Vitória de Guimarães.

«Notava-se alguma rebeldia na forma de jogar, era só o primeiro contacto dele com o futebol federado. O Dário tinha oito anos. Jogava sempre com alegria, sempre a sorrir. Era empenhado e ao mesmo tempo divertido. Dava-se bem com todos os colegas e respeitava muito a dupla de treinadores. Respeitador, humilde, era e é assim o Dário.»

Dário Essugo numa equipa dos infantis do Sporting

A temporada chega ao fim. O encanto de Dário Essugo, nove anos, chega um pouco a todo o país. Os observadores elogiam o futebol de um médio alto, com bons pés e um pulmão inesgotável. O Benfica pisca-lhe o olho, o FC Porto e o Sp. Braga informam-se, mas é o Sporting que Dário e a família querem.

Ao sair para os leões, o menino faz uma promessa ao ‘padrinho’: ‘Quando me estrear nos seniores do Sporting, a camisola é para ti’. Promessa cumprida.

‘Padrinho, a camisola será sua’, disse-me o Dário já muito à noite, depois da estreia contra o Vitória. Eu nem estava em mim, de tanta emoção. Na manhã de domingo, o senhor João fez-me o favor de vir aqui a Loures. Eles moram em Odivelas e o pai do Dário fez questão de me oferecer esse presente. É emocionante.»

António Martins adora o menino. Cada palavra sai a custo, espremida pela emoção. «A família Essugo é muito sólida. São todos muito unidos. Não vão permitir que o Dário perca o equilíbrio.»

«A mãe, Florinda, era das que mais vibrava na bancada»

A saída do UDR Santa Maria-Geração Benfica está definida. Mas para onde? Ricardo Damas é o primeiro treinador do médio no Sporting, temporada 2014/15, e recorda partes do processo que o levam para a Alcochete.

«O Dário estava a ser seguido por outros clubes, foi treinar ao Benfica inclusivamente, e no Sporting percebemos que tínhamos de reagir rapidamente. Tivemos uma reunião com os pais, falámos do projeto do Sporting e, na altura de decidirem, decidiram bem. O tempo tem comprovado isso.»

Ricardo Damas fica rendido em poucos minutos ao futebol de Dário. Não no campo, mas ao volante do automóvel que vai buscar e levar o menino a casa dos pais.

«Fui buscá-lo à escola no primeiro dia no Sporting, porque os pais não podiam. Eu também vivia na zona de Odivelas e levei-o depois a casa. Ele falou comigo, trocou ideias, mostrou que já era um homenzinho com uma cabeça muito boa. Essas viagens de carro com ele impressionaram-me. Falávamos de futebol, de outros jogadores e ele conhecia todos, percebi que adorava mesmo futebol e não só jogar futebol», partilha o antigo treinador do centrocampista.

Dário (segundo à esquerda) durante uma visita de João Benedito à escola

No Sporting, Dário conquista o balneário e a liderança do mesmo. «Criou amizades com todo o grupo. Afirmou-se como líder, tendo um perfil muito afetuoso», confirma o ex-treinador Ricardo Damas. «Tinha um conhecimento muito interessante sobre o jogo, tecnicamente era evoluído e fisicamente também já se destacava. O potencial estava lá e todos percebemos isso.»

Ricardo Damas acompanha Dário Essugo durante duas épocas. Fala de um atleta que joga «com felicidade e sem esforço», e que conta desde o primeiro momento com o acompanhamento «exemplar» dos pais. Sempre os pais.

A mãe, a Florinda, era uma das senhoras que mais vibrava com a nossa equipa na bancada. O pai, o João, sempre foi mais reservado. Acompanharam muito bem o Dário e o Danilo, o irmão [jogador dos sub23 do Sporting]. Eram interessados e aceitavam todas as nossas sugestões, valorizavam muito o trabalho feito pelo Sporting. O Dário foi buscar a personalidade mais extrovertida à mãe.»

Pelas «características e personalidade», Ricardo Damas e a estrutura do Sporting sentem facilmente que Dário seria um jogador para «proteger e levar» até aos seniores. A teoria bate certo com a prática, embora a uma velocidade que nenhum matemático teria coragem de anunciar.

«Claro que ninguém imaginava que se estreasse com 16 anos. O Dário ainda está em formação e precisará de muitos minutos de jogo para consolidar os pontos fortes que tem no seu futebol. E que são muitos. O Sporting não se enganou.»

«Fui a casa dos Essugo [após a estreia] e parecia um dia normal»

Os sonhos de Dário multiplicam-se, atropelam-se, realizam-se a uma velocidade anormal. O tempo avança. Estamos em 2017 e chega ao Sporting aquele que se tornaria no melhor amigo do pequeno Essugo: Guilherme Pereira.

«Fui para o Sporting em 2017 e joguei dois anos com o Dário, até 2019. Nessa altura saí para o Belenenses. Foi a pessoa que mais me ajudou a integrar no plantel, a conhecer a equipa e a sentir-me confortável», diz ao nosso jornal o camarada do rookie leonino.

Guilherme chega do Casa Pia e tem um batismo de fogo nos Açores. Dário assume nesse momento um papel fraternal. É a palavra e o ombro amigos, o confidente e o conselheiro.

«O meu primeiro torneio com o Sporting foi nos Açores, o Pauleta Soccer Cup. Foi no final da época em que eu ainda estava no Casa Pia. Benfica, FC Porto, PSG, Bétis, não estava nada habituado àquilo. Tive a sorte de ficar no quarto com o Dário e a nossa ligação começou a ser muito forte aí», explica Gui Pereira.

Dário e Gui Pereira nos iniciados do Sporting

«Na noite da véspera da meia-final contra o Benfica eu estava muito nervoso e ele tranquilizou-me. ‘Vai com calma, vai correr bem, joga como sabes’. Se estivesse no quarto com outra pessoa, o dérbi não me teria corrido tão bem.»

Guilherme diz que nessa equipa do Sporting há três meninos a destacarem-se: Guilherme Santos, Mamadu Djaló e, claro, Dário Essugo.

O Dário foi sempre especial. Pela forma de jogar e pela humildade. Dizia aos meus colegas que ele ia dar jogador de certeza absoluta. Ele e a família são muito humildes, o Dário tem uma dedicação única e em campo é um animal, no bom sentido. Corre para todo o lado, está em todo o lado. Tem muita qualidade de passe, só precisa de melhorar o remate. É um médio mais defensivo, mas é capaz também de sair a jogar e aparecer em zonas mais ofensivas.»

Em relação ao jogador, estamos conversados. E o amigo? «Digo isto de coração: é das melhores pessoas que conheci até hoje. Ajuda, trabalha, pensa nos outros, é bondoso, é um rapaz fantástico. Vou a casa dele com frequência e tive a noção do que é aquela família. São mesmo pessoas fantásticas e ajudaram o Dário a ser o que é hoje. Por mim será um dos meus melhores amigos pelo resto da vida.»

A amizade é tão forte que, ainda esta semana, Guilherme visita Dário na casa dos pais, agora na zona de Colinas do Cruzeiro, também em Odivelas.

«Fui a casa dos Essugo ontem [segunda-feira] e estavam felizes, mas muito serenos, sem euforias. Ouvi os pais a dizerem-lhe para ele ter calma e cabeça. Eles são assim. Parecia mais um dia normal.»

«Se o Benfica lhe desse três vezes mais, o Dário recusava»

Aos 16 anos, quase todos os pecados são aceitáveis. Compreensíveis. Dário, muito focado no que já quer, nem a isso se atreve. «Vê futebol, passa os olhos pelas redes sociais e pouco mais», confidencia Gui Pereira, um dos seus melhores amigos.

«Passa o dia a ver futebol. Ainda ontem fui a casa dele e estava a ver o Casa Pia-Penafiel. ‘Estás maluco, pá?’ Ele é assim, vê tudo o que seja futebol», brinca o também médio que saiu recentemente do Belenenses e vai voltar ao Casa Pia.

Gui (à esquerda), com Marlon e Dário Essugo, três amigos no Sporting

Poucos, como ele, conhecem a intimidade dos Essugo, uma família com raízes em Benguela. «O Dário já nasceu em Portugal. São todos muito ligados ao Sporting. O Dário é leal ao Sporting e a tudo o que clube já fez por ele e pela família. Se o Benfica lhe oferecesse três vezes mais, o Dário não iria para lá. É impossível.»

Estamos em 2021. Guilherme, tal como Dário, está parado desde março de 2020. A pandemia rouba o futebol às camadas jovens e poucos têm a sorte de ser integrados em plantéis oficiais. Num par de semanas, a vida do rapaz que ficou um dia esquecido no Senhor Roubado muda radicalmente.

«O Dário é muito acarinhado pelo Sporting. Foi chamado aos juniores há pouco tempo e há duas semanas o Ruben promoveu-o. Acredito que tenha recebido um bom feedback sobre ele. E agora já tem minutos na I Liga e pode ser campeão nacional. Ainda ontem estávamos juntos nos iniciados.»

A EB1 de Santo António, o Torneio McDonalds, o ano no UDR Santa Maria-Geração Benfica, a entrada no Sporting pelos benjamins, os títulos ganhos nos infantis e nos iniciados. A chamada aos seniores e a estreia na Liga. As obras completas de Dário Essugo.

NOTA: fotos gentilmente cedidas por António Martins, Carlos Alvarez, Ricardo Damas e Guilherme Pereira