O meu grande problema com o futebol português começou há 35 anos, nos jogos de rua. Foi quando percebi que a ausência de um árbitro se resolvia demasiadas vezes pela intensidade da gritaria nos lances duvidosos. Na escolha das equipas, a convicção com que se exprimiam certezas nas discussões de faltas e bolas fora era um argumento ainda com mais peso do que a potência de chuto. Nas peladas da nossa rua, um bom gritador tinha quase tanto prestígio social como o dono da bola.

O tempo acentuou o problema, porque nunca consegui fingir veemência nas discussões quando não tinha a certeza de que a minha posição («a bola não saiu!») era verdadeira. E porque o ultraje de ver alguém, na maior cara de pau, assumir conscientemente a defesa de uma mentira («estava meio metro fora!») se traduzia, no recomeço do jogo, em cinco ou dez minutos de passividade revoltada, que contribuía invariavelmente para a derrota da minha equipa.

No dia em que um dos grandes gritadores da vizinhança deixou os nossos jogos de rua para se tornar jogador profissional eu já tinha perdido as ilusões. Passei a ver o futebol português como um centro de formação para donos da bola, reis da vitimização e campeões do grito. Com espaço para fantásticas exceções, até hoje continuo a vê-lo assim. Os seus dirigentes são a expressão mais refinada dessa cultura do grito («penálti!») como reflexo condicionado, partilhada por grande parte dos adeptos e transmitida desde o berço aos jogadores em formação.

- --- - - - -

Neste sábado, durante o Galatasaray-Besiktas, com a sua equipa a ganhar por 1-0, o central do Gala, Semih Kaya, discutiu um lance com Olcay Sahan e tocou a bola pela linha de fundo. O árbitro internacional Cuneyt Çakir equivocou-se e assinalou pontapé de baliza. A jogada não era fácil de avaliar: há um ressalto com os dois jogadores muito próximos e tudo se passa no lado oposto ao dos dois árbitros auxiliares. Ainda assim, o erro de avaliação deixou Sahan num estado de indignação com tanto de teatral como de silencioso.

Talvez por não querer ficar com a indignação do seu colega de seleção na consciência, talvez apenas por ser uma pessoa bem formada, Kaya foi ter com o árbitro, explicou-lhe que se tinha enganado e que devia marcar canto contra a sua equipa.



O gesto, estranho para os nossos padrões, foi ainda mais estranhamente aplaudido pelos adeptos do Galatasaray. E valeu a Kaya os cumprimentos respeitosos do árbitro, dos adversários (Hugo Almeida à cabeça) e dos companheiros de equipa. Mais estranho ainda: no final do jogo, durante a «flash interview», foi todo o painel de comentadores da TV turca que se levantou para o aplaudir de pé.

Nessa noite contei a história a uma pessoa que sabe pouco de futebol, tentando explicar-lhe com algum contexto o que representa um Galatasaray-Besiktas na cultura de Istambul. A sua reação foi fria: «É caso para tanto? Limitou-se a fazer o que devia, não foi?» E então lembrei-me desta frase:

«É preciso pensar como um herói para agir apenas como um ser humano decente»

É da poetisa norte-americana May Sarton, no seu «Diário da Solidão», e foi aproveitada por John Le Carré como mote para «A Casa da Rússia», um romance de espionagem sobre dilemas morais. No caso deste texto, a frase serve apenas para prestar homenagem a Samih Kaya: pode nunca vir a ser um central inesquecível mas foi capaz, nas circunstâncias extremas de um Galatasaray-Besiktas, de agir como um ser humano decente. Nem todos os heróis podem dizer o mesmo.

P.S.: O meu antigo parceiro de peladas, dono da bola e gritador emérito, chegou a internacional e a ídolo de um grande clube. E eu sei que já passaram mais de 30 anos, e os joelhos já não me deixam chegar à linha de fundo como dantes. Mas às vezes, quando vejo momentos destes, protagonizados por um ser humano decente, ainda acredito que um dia virá ter comigo. Vagamente envergonhado, com a Tango esfarrapada debaixo do braço, confirmará perante testemunhas aquilo que nós dois sabemos muito bem: que eu tinha toda a razão e que aquela bola não saiu coisíssima nenhuma.