Quando comecei a escrever esta crónica ainda o Sérgio Pereira não tinha publicado a dele. Quando a publicou, na sexta-feira, a minha reação foi adulta e profissional: «Grande estupor!», pensei. Porque o ponto de partida para o meu texto era, quase palavra por palavra, o ponto de chegada do dele: não há só uma maneira de se ser especial. Isto vinha a propósito de treinadores, sim. Mas também de jogadores, de equipas, e do futebol em geral. Que é, já se sabe, uma maneira de falarmos da vida, tirando-lhe as partes chatas.

Dado que o Sérgio já o disse, resta-me repetir mais alto, como um bêbado a ganhar tempo para se lembrar do fim da história: não há só uma maneira de se ser especial. É uma evidência, e porém soa estranha, face à insistência com que somos convidados a estreitar horizontes, através de discussões cada vez mais circulares, ruidosas e entrincheiradas, assentes em pares mutuamente exclusivos.

Cristiano ou Messi. Posse ou transição. Jesus ou Fonseca. Humildade ou arrogância. Ittihad ou Emirates. Mourinho ou Guardiola. Fazer em casa ou comprar feito. O debate, quase sempre sem meio termo, não deixa a menor possibilidade de um «e», muito menos margem para mudar de lado. Tudo em nome de uma superioridade moral desmentida por 130 anos de história do futebol: se alguma coisa fica clara neste caminho é a certeza de que a evolução se faz, sempre, por oposição a uma ideia dominante em dado momento. Por isso, aqui como em quase tudo o resto, há cem mil maneiras de se ter razão e de fazer as coisas bem feitas.

Claro que gostar de futebol é fazer escolhas. Fazê-las sempre, a todo o momento, projetando nelas as nossas preferências – estéticas, afetivas ou, à falta de melhor palavra, ideológicas. Mas isso não significa que essas escolhas devam ser imutáveis. Quanto mais não seja porque isso nos torna cegos em relação às mudanças que acontecem à nossa volta, dentro e fora dos estádios. E a cegueira, a pretexto de futebol, não é uma obrigação, apenas mais uma escolha.

O futebol só é importante («
a mais importante das coisas pouco importantes», dizia Arrigo Sacchi) enquanto continuar a ser um eco das nossas memórias, da nossa identidade - enquanto nos der raízes. Por isso, de entre as cem mil maneiras de admirar treinadores especiais, hoje escolho a de admirar os que trabalham por um punhado de euros ao fim do mês, ou nem isso. Os que sustentam clubes de aldeia, ou de bairro, onde ainda não chegaram as linhas de montagem da McFormação e de onde nunca sairá um grande negócio.

Sofrem ao frio, várias vezes por semana, em campos mal iluminados. Em sintéticos que se esfarelam a cada treino em migalhas de borracha preta. Em pelados que nos remetem para o princípio desta história, quando o futebol se jogava apesar do chão. Preocupam-se com os miúdos, zangam-se com eles e felicitam-se por pequenas vitórias quotidianas, que pouco têm a ver com futebol. Porque, nestes casos, a vida vai incluir sempre as partes chatas.

Nunca os conheceremos, nunca saberemos os seus nomes, nunca lhes veremos as caras na TV. Mas cuidam-nos das raízes. E têm cem mil vezes razão.