«Onde estavas a 5 de julho de 1982?» é a pergunta sacramental para os adeptos de futebol com 40 anos ou mais. O «dia do Sarriá» é o equivalente futebolístico à memória coletiva do 11 de setembro, o contraponto global à ferida portuguesa da final do Euro-2004 («onde estavas quando Charisteas saltou?»).

Nos últimos anos nenhum outro jogo alimentou tantas discussões teóricas, moldadas pelo saudosismo e pela ideologia. O Itália-Brasil de Barcelona poderia ser o equivalente futebolistico ao questionário de Proust, por aquilo que revela da personalidade de quem o recorda. E se julgam que é exagero digam-me quantos jogos das últimas décadas conhecem que tenham dado origem a peças de teatro ou documentários, como este da ESPN, feito no 30º aniversário da partida:



Ponto de viragem na história do Mundial de 1982, a vitória da Itália, por 3-2, sobre uma seleção brasileira sedutora e festiva, moldou o imaginário de uma geração de adeptos. Para a lenda, ficou uma versão simplificada: foi a tarde em que o cinismo venceu a noção lírica do jogo e em que o futebol se despediu de vez da inocência.

Esta versão é duplamente distorcida. Primeiro porque, nessa tarde, a Itália, longe de ser cínica, ganhou porque foi melhor equipa, mais completa e competente – e ainda por cima jogou futebol bonito. Depois, porque bastaria ver a defesa do Arsenal nos primeiros 20 minutos do recente jogo com o Liverpool para perceber que a inocência no futebol continua viva e de excelente saúde.


Júnior, Sócrates, Cerezo, o selecionador Telé Santana, Edinho e Zico

Este texto não pretende determinar uma leitura historicamente «certa» do jogo de Barcelona, até porque é fácil revê-lo na íntegra (por exemplo, aqui). Pretende, sim, lembrar por que razão esse Brasil de 82 forma, com a Hungria de 54 e a Holanda de 74, a Santíssima Trindade dos que, perdendo o «seu» Mundial, conquistaram algo de muito mais raro, o direito à imortalidade.

O «rei de Roma»

Esse Brasil apostava tudo na concentração de talentos e tentava resolver com talento todos os problemas que o jogo lhe criava. A convivência, no mesmo meio-campo, de Cerezo, Falcão, Zico e Sócrates, foi responsável por algumas das ideias mais sedutoras postas em forma de jogada nas últimas décadas. E o efeito deslumbrante das suas combinações – acentuado pela percussão festiva nas bancadas e o amarelo berrante das camisolas – ajudou a diluir alguns dos óbvios defeitos da equipa.


Falcão, Zico, Éder, Cerezo, Serginho, Oscar, Leandro, Luisinho, Júnior, Waldir Peres e Sócrates

À fragilidade evidente das opções na baliza (Waldir Peres, um dos piores guarda-redes desse Mundial) e a ponta-de-lança (Serginho, um avançado problemático, que mais tarde viria a passar pelo Marítimo), o 4x2x2x2 desse Brasil juntava problemas estruturais graves. Desde logo, a quase total ausência de jogo pelos flancos, uma vez que não havia extremos e os laterais, Leandro e Júnior, muito ofensivos, tinham tendência a fletir para o meio em vez de procurarem a linha de fundo. Sem cruzamentos, os 191 centímetros de Serginho tornavam-se quase tão inúteis como o seu lamentável primeiro toque, quando tentava receber de costas para a baliza.


Como se arrumava o Brasil de 1982

Até à tarde desse 5 de julho tinha sido relativamente fácil esquecer esse e outros problemas. Afinal, quando Zico e Sócrates empunhavam a batuta a meias, faziam maravilhas como esta. E, depois, como o mundo estava a descobrir nesse Campeonato, ainda havia Falcão.

Alcunhado o «rei de Roma» pelos adeptos «gialorossi», Falcão jogava na Série A desde 1980. Já tinha 28 anos nesse verão, mas esse era um tempo em que não havia futebol na TV todos os fins de semana. Por isso, era o menos conhecido dos quatro médios da canarinha. E foi, assim, o que causou impressão mais forte nos quatro jogos que antecederam essa cimeira do Sarriá.

Apesar de ser, em teoria, o mais recuado do quarteto, o 15 do Brasil tinha contribuído com dois golos e duas assistências para as quatro vitórias que levaram a seleção até ali. Seria seu, também, o último golo brasileiro nesse Mundial, o último momento de magia da canarinha 82. E vale a pena olhá-lo com atenção, porque resume tudo o que tornou inesquecível esse Brasil, apaixonante e desequilibrado.

Perfeitos, pela última vez

Decorre o minuto 68. O empate apura o Brasil para as meias-finais, mas está 2-1 para a Itália. Já com os descontos, faltam pouco mais de 23 minutos para o israelita Klein apitar para o fim do jogo e até lá muitas coisas vão acontecer. A que nos traz até aqui começa agora, no pé direito de Zoff, o guarda-redes e capitão de Itália. Daí a menos de uma semana vai tornar-se o mais velho jogador de sempre a tornar-se campeão do Mundo. Ainda não o sabe, mas começa a acreditar.

Zoff bate longo, a bola sobe muito e cai, quase na vertical, no limite do grande círculo. O ponta de lança italiano, Paolo Rossi, está longe, entre os centrais. Quando recua para discutir o lance, não o faz de forma muito convicta. Falcão fica à vontade para avaliar a trajetória da bola e, com um desplante técnico, deixá-la acabar o voo de 60 metros no peito do seu pé esquerdo. Daí, desliza suavemente, rasteira, na direção do central Luisinho. Este dá dois toques, levanta a cabeça, e vê Júnior adiantado na esquerda, já no meio-campo italiano.

O lateral-esquerdo do Brasil joga igualmente bem com os dois pés, mas prefere o direito. Por isso, sempre que pode, foge para o meio, procurando espaço de remate. É isso que faz, ao quinto toque, quando Bruno Conti, lhe sai ao caminho, procurando o desarme: avança em paralelo à linha da grande área, criando o primeiro desequilíbrio defensivo aos italianos.

Lá na frente, dentro da área, Serginho fixa o jovem central Bergomi, enquanto Zico arrasta a marcação de Gentile para a esquerda. Sócrates arranca em velocidade pelo meio, levando com ele Cabrini e Tardelli. Está criado espaço no lado direito do ataque do Brasil, e é isso que percebem os seus dois médios recuados. Nos sete segundos que duraram este movimento, Cerezo acompanhou Júnior pelo meio, à espera da tabelinha. O lateral tem outra ideia, e introduz ordem neste caos. Há sete jogadores do Brasil numa faixa que, a toda a largura do campo, não tem mais de quinze metros de profundidade. Júnior faz a escolha certa: levanta a cabeça e vê Falcão, que iniciou a jogada, a fazer um sprint longo, que o deixa à entrada da área, sem marcação, sobre a direita.

É aqui que se acentua a magia. O passe de Júnior, com a parte exterior do pé direito, é de uma subtileza notável e morre no pé direito de Falcão. O «rei de Roma» ataca o espaço e fixa Tardelli, o italiano que lhe está mais próximo. Ao mesmo tempo, Cerezo inicia um sprint em curva, para a direita, que o faz passar nas costas do companheiro antes de prosseguir na direção da linha de fundo. A linha de passe é perfeita, e o apelo a pedir a bola é bem audível. Tão audível que quando Falcão, com uma ligeira troca de pés, simula o passe ao companheiro, Cabrini, Tardelli e Scirea, os três italianos que tapam a baliza de Zoff, reagem como um só: seguem a pista falsa de Cerezo, abrindo uma clareira que Falcão está livre para explorar.



Poucas coisas exprimem melhor a inteligência de um movimento como a repetição, atrás da baliza de Zoff, que nos mostra a tripla mancha azul a afastar-se para a esquerda, enquanto Falcão ajeita a bola com dois toques, para o outro lado, pondo-a à medida do seu pé esquerdo. Jogadores como Falcão não têm «mau pé», este é apenas o menos bom. O remate é menos perfeito do que o resto, mas sai forte, e com a colocação necessária para evitar o joelho de Bergomi e a mão direita, estendida por Zoff.



Enquanto Falcão, o rosto distorcido pela euforia, corre em direção à câmara e ao banco dos suplentes, o Brasil em peso festeja, e não está só. Mesmo sabendo que, daí a apenas seis minutos, a canarinha vai novamente pagar o tributo aos seus defeitos, permitindo a Rossi fixar o 3-2 definitivo, apetece homenagear a perfeição deste golo. Deixemo-los assim, só por esta vez.