25 de maio de 1967. O Celtic surpreende, no Jamor, o Inter e o mundo do futebol. O público português aplaude de pé os Lisbon Lions, que voltam a dar brilho e glamour ao jogo mais popular do planeta. 

A Inglaterra ganhou o Campeonato do Mundo há poucos meses, mas os clubes britânicos ainda procuram o primeiro sucesso na Taça dos Clubes Campeões Europeus. É mesmo a primeira final na principal prova do continente. Até aqui, apenas Tottenham (1962/63) e West Ham (1964/65) saborearam o sucesso além fronteiras, com a conquista da Taça dos Clubes Vencedores das Taças. Outros britânicos, Liverpool e Rangers, chegariam perto, com presenças em jogos decisivos da mesma competição, nos dois anos seguintes. A Taça UEFA, hoje Liga Europa, ainda não existe, só terá a primeira edição em 1971.

O verdadeiro significado da final de Lisboa estende-se bem para lá do imediato: precipita o fim do catenaccio.  La Grande Inter perderá dias depois o título de campeão italiano, e Helenio Herrera, que reinventou o ferrolho imaginado pelo austríaco Karl Rappan, será afastado dentro de um ano. O golpe de misericórdia chegará aos pés do Ajax de Cruijff e companhia, já nos Seventies, mais concretamente cinco anos depois. É verdade que a filosofia não morre em definitivo, permanece no subconsciente coletivo italiano e é revisitado aqui e ali até por equipas de outros países, mas podemos sempre perguntar-nos: que seria hoje do futebol se não fosse essa queda estrondosa no Jamor perante a vertigem escocesa?


Os Lisbon Lions

Favorito? Há dúvidas?

O Inter ganhou as Taças dos Campeões de 1964 e 65, perante Real Madrid e Benfica, e prolongou o domínio italiano no futebol do continente, que se tinha estreado em triunfos na prova com a vitória do Milan (também frente aos encarnados) de 1963. Os nerazzurri são obviamente os favoritos, e nem mesmo os jogadores do Celtic – que nesse ano conquistam tudo: liga, taça, taça da liga e taça de Glasgow – podem pensar de outra maneira. Se for preciso outra razão para justificar a ideia basta lembrar que os italianos apenas perderam um jogo na competição em quatro anos, frente ao Real Madrid, vencedor da última edição (1-0 na primeira mão da meia-final, com golo de Pirri, no Santiago Bernabéu).

Resta alguma dúvida? Deixo uma: Herrera perdeu Luis Suárez nos últimos dias por lesão e a influência do grande avançado na equipa será certamente sentida.

Lembro-me que, a certa altura, Picchi virou-se para o nosso guarda-redes e disse: «Giuliano, deixa estar, deixar estar. Mais cedo ou mais tarde vão marcar o golo da vitória.» Nunca imaginei ouvir aquelas palavras. Nunca imaginei que o meu capitão dissesse ao nosso guarda-redes para deixar cair a toalha ao chão. Mas aquilo apenas mostra o quanto estávamos destruídos naquele momento. É como se não quiséssemos prolongar a agonia.
Tarcisio Burgnich, defesa italiano.

Os Glaswegians lutam até ao limite no Jamor

Do lado dos escoceses, a união é total. São  Glaswegians, não há ninguém de mais longe do que 50 quilómetros de Glasgow. Uma cidade que em breve se tornará capital da Europa, apesar de o Rangers, apenas seis dias depois, não conseguir trazer de Nuremberga a Taça das Taças, conquistada pelo Bayern.

Ideias opostas

Os Lisbon Lions, como são conhecidos a partir daqui, desenham 42 tentativas de golo (contra cinco dos rivais), das quais 24 terminaram em remates e dez em pontapés de canto. Organizados num 4x2x4 muito dinâmico, empurram praticamente toda a equipa italiana para a frente da sua baliza. De nada adianta a Helenio Herrera o conhecimento retirado do treino do rival no dia anterior. O treinador Jock Stein planeia ver os italianos no relvado do Jamor, mas os italianos antecipam a sessão e, quando os Bhoys finalmente chegam, já estes tinham terminado. Em vez de serem observados, sentam-se nas bancadas a observar.

Diz a lenda que Stein começar a vingar-se bem cedo no dia seguinte: manda os jogadores entrar em campo a cantar o hino do clube e senta-se no banco que Herrera escolhera para si, e do qual não se move nem com a revolta dos transalpinos.


Jock Stein (à esquerda) e Helenio Herrera (à direita)

Também de pouco vale aos de Milão a vantagem conquistada cedo. Aos sete minutos, o Inter consegue o que mais deseja: um golo para defender. Aparece de penálti, depois de James Craig derrubar Renato Cappellini. Sandro Mazzola, filho de Valentino - um dos melhores futebolistas dos anos 40 morto na tragédia de Superga -, recorda certamente o pai na hora do remate. O Torino tinha feito um amigável precisamente em Lisboa, em maio de 1949, antes de o avião se despenhar contra a Basílica da sua cidade, acabando com uma das equipas mais fortes da Europa.

O Jamor tem o que quer

O Celtic faz do golo sofrido a fraqueza onde vai buscar as forças para ganhar a final. O Inter é remetido à defesa, com o guarda-redes Giuliano Sarti a ser obrigado a grandes intervenções. Os escoceses tentam de tudo. Auld e Gemmel acertam na trave, Johnstone obriga Sarti a vários voos, mas o golo tarda mais de uma hora. Aos 63, Murdoch e Craig preparam o terreno para Gemmel ultrapassar finalmente, de fora da área, um Sarti cada vez mais assobiado. Além dos muitos escoceses presentes entre os 45 mil das bancadas, o público português também torcia pelos underdogs. A arrogância, o estilo demasiado defensivo e o antijogo dos italianos colocara os rivais como os favoritos do estádio, que explode em euforia com o grande golo do lateral-esquerdo.

A cinco minutos do fim, Stevie Chalmers marca o golo mais importante da carreira, também de meia-distância. Sarti está caído, como o está também o famoso catenaccio. O Celtic é campeão da Europa e o futebol liberta-se das amarras que lhe colocaram à volta.


A Taça é do Celtic pela primeira e única vez até hoje


FICHA DE JOGO:

Estádio Nacional, em Lisboa
Árbitro: Kurt Tschenscher (Rep. Federal Alemã)

CELTIC - Ronnie Simpson; James Craig, Billy McNeill (capitão), John Clark e Thomas Gemmell; Robert Murdoch e Bertie Auld; Jimmy Johnstone, William Wallace, Stevie Chalmers e Robert Lennox

INTER - Giuliano Sarti; Armando Picchi (capitão); Tarcisio Burgnich, Aristide Guarneri e Giacinto Facchetti; Giancarlo Bedin; Angelo Domenghini, Sandro Mazzola, Mauro Bicicli e Mario Corso; Renato Cappellini

O jogo completo:


1967, The Year of the Scots (documentário):


Outras anatomias de um jogo:
1953: Inglaterra-Hungria, o jogo que mudou o jogo (e um país)
1970: Itália-Alemanha, o jogo do século
1973: Ajax-Bayern, o futebol nunca foi tão total
1974: RFA-RDA, o dia em que a Guerra Fria chegou ao Grande Círculo
1982: França-Alemanha, o jogão que o crime de Schumacher abafou
1986: Argentina-Alemanha, a vitória de uma nova religião
1994: Milan-Barcelona, o fim do sonho do Dream Team
1994: Leverkusen-Benfica, empate épico sentido como grande vitória
1999: Bayern-Manchester United, o melhor comeback de sempre
2004: Holanda-Rep. Checa, o futebol de ataque é isto mesmo
2004: Sporting-FC Porto, o clássico da camisola rasgada
2005: Milan-Liverpool, o fim do paradigma italiano
2005: Argentina-Espanha, a primeira página da lenda de Messi
2009: Liverpool-Real Madrid, pesadelo blanco aos pés da besta negra

ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus ( @luismateus  no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na 
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