A chamada de William Carvalho à Seleção, numa altura em que Raul Meireles está sem competir há mês e meio e Miguel Veloso tem problemas num joelho, abre a possibilidade de o médio do Sporting ser um estreante titular, num jogo de enorme responsabilidade. Nesta sexta, Paulo Bento, que habitualmente é pouco avesso a aventuras, não quis abrir o jogo, sobre uma situação relativamente invulgar. 

A acontecer, porém, não seria inédita, nem na história da Seleção, nem no consulado do atual selecionador. É verdade que nem todos os antecedentes correram bem. Mas o balanço é amplamente positivo: os estreantes costumam sair por cima nos batismos de fogo.

Entre os 19 internacionais que já lançou nestes três anos, Paulo Bento promoveu diretamente ao onze dois estreantes absolutos em jogos de responsabilidade: João Pereira teve o batismo no primeiro jogo do selecionador, a vitória de tudo ou nada sobre a Dinamarca, e nunca mais deixou de contar com a confiança de Paulo Bento. Curiosamente, foi a lesão de João Pereira que forçou o selecionador proceder ao segundo batismo, dando a titularidade a André Almeida no recente jogo com Israel, quando Portugal ainda sonhava com o apuramento direto. Nesse caso, o empate acabou por amargar a estreia, embora o desempenho do lateral tenha sido aprovado.

Jogar como no clube

Outros estreantes em jogos a doer da Seleção deixam a mensagem: o mais importante é controlar a ansiedade e sentir rapidamente que tem a confiança do grupo e do líder. Alex, ex-Benfica e V. Guimarães, tem excelentes memórias do seu primeiro jogo: um Portugal-Eslováquia determinante na caminhada para o Mundial 2006. Na Luz, em junho de 2005, Alex beneficiou das ausências de Miguel e Paulo Ferreira e contribuiu para uma vitória por 2-0 que deixou a qualificação bem encaminhada: «Foi um dia diferente. Era uma estreia, e eu não tinha um percurso nas camadas jovens. Durante a semana senti-me bastante acarinhado, mas o dia do jogo foi de algum nervosismo. Foi tudo muito intenso, os minutos iniciais, o aquecimento, a emoção do hino. Depois, aos poucos, as sensações tornaram-se iguais às de qualquer outro jogo», conta o atual treinador do FC Felgueiras 1932.

A confirmação de que seria titular não apanhou o lateral vimaranense de surpresa: «Durante a semana comecei a perceber que tinha hipóteses e alguns jogadores mais experientes iam-me dando feedback positivo, como foi o caso de uma conversa com o Costinha. Na noite anterior ao jogo dormi normalmente. Não tinha certezas, mas achava que tinha grandes chances» lembra, antes de deixar a chave para uma boa experiência: «Nunca fui tratado como um estranho, senti-me sempre apoiado. E Scolari, desde o primeiro dia, mostrou estar do meu lado. Encorajou-me sempre, em conversa individual ou perante o grupo. Às vezes pode ser um erro pedir a um recém-chegado mais do que está habituado a fazer no seu clube, mas Scolari nunca me exigiu mais do que aquilo que fazia no Vitória. Essa atitude contribuiu para um dos dias mais felizes da minha vida profissional», sublinha.



Alex guarda na memória, como uma medalha, um cumprimento especial: «Esse jogo assinalou o regresso de Figo à seleção, depois de um ano de ausência. Tive a felicidade de fazer a ala direita com ele, e durante o jogo conversou muito comigo, o que é sempre importante. Ele tinha aquela atitude que torna as coisas fáceis para um defesa, fazia lembrar o Kobe Bryant na NBA: defendam e depois metam em mim que eu resolvo. No final deu-me os parabéns, e isso contou muito», admite.

Em relação a William Carvalho, nenhuma dúvida: se for chamado, estará pronto: «É jovem e tem desenvolvido trabalho extremamente positivo. Para estar selecionado é porque tem possibilidade de jogar, não vejo o Paulo Bento a chamar alguém que não considere apto. Se isso acontecer, o importante é meter na cabeça que tem de fazer aquilo que já faz no clube e jogar naturalmente», conclui.

Controlar a ansiedade

Outra estreia feliz, mas de contornos diferentes, teve o médio Bino como protagonista. Em outubro de 2000, recém-sagrado campeão pelo Sporting, e a caminho dos 28 anos, foi chamado por António Oliveira para um Holanda-Portugal determinante na campanha para o Mundial-2002. Sem os habituais Paulos (Bento, suspenso e Sousa, lesionado) para o meio-campo, Bino fez dupla com Vidigal na «banheira» de Roterdão.



Apesar de ser uma estreia, naquela vitória por 2-0 parecia jogar há anos na Seleção. Talvez por isso ser parcialmente verdade, explica o ex-jogador: «Eu não tinha a idade do William, era bem mais experiente. E além disso tinha um percurso vasto nas seleções jovens, desde os sub-16. Vários jogadores tinham sido meus colegas, no Porto e no Sporting e outros tinham o mesmo percurso de formação que eu. Resumindo: conhecia a personalidade dos meus companheiros e não era um miúdo. Claro que há sempre aquela ansiedade normal, do primeiro contacto, a primeira refeição em grupo. Mas para mim foi fácil, não houve estranheza», conta o atual treinador de sub-15 no FC Porto.

A confirmação da titularidade não lhe trouxe angústias especiais, e o facto de o jogo começar cedo a correr bem ajudou ao resto: «Estivemos bem, não deixámos que eles criassem muitas situações de perigo, e além dos golos do Pauleta e do Sérgio Conceição ainda tivemos mais oportunidades» lembra, acrescentando que não se sentiu alvo de qualquer tratmento especial: «Acredito que o melhor nestas situações é tratar o recém-chegado exatamente como um dos outros, para que se sinta integrado. Não como alguém que está ali por falta de alternativas ou outra circunstância especial», resume.

Bino estende a visão descontraída acerca da estreia na seleção ao caso de William Carvalho, caso venha a ser escolhido por Paulo Bento: « Jogar por Portugal traz sempre alguma emoção, mas se ele for escolhido e conseguir controlar essa ansiedade natural tem tudo para fazer bem o seu trabalho», conclui.

De Eusébio a Pepe, outras estreias marcantes

Além dos casos referidos, a história da seleção nas últimas décadas está bem recheada de estreias em jogos exigentes. Pelo lado das boas memórias recentes, Pepe estreou-se a titular em 2007 – com grande exibição – no empate (0-0) com a Finlândia que valeu o apuramento para o Euro-2008. E em 2001, António Oliveira não hesitou em lançar três estreantes – Ricardo, Petit e Frechaut - no onze inicial que empatou na Irlanda (1-1), praticamente garantindo a ida ao Mundial 2002.

É verdade que algumas estreias correram mal. O que, ainda assim, não impediu que os jogadores em causa viessem a ter longas carreiras na equipa das quinas. O exemplo mais óbvio é o de Eusébio, que se estreou a titular numa humilhante derrota (4-2) com o Luxemburgo, em jogo de apuramento para o Mundial 1962. Quatro anos mais tarde, em Inglaterra, foi o que foi. E também Manuel Bento teve uma estreia amarga na baliza da seleção, na derrota por 0-2 com a Polónia, nas Antas, que viria a custar a ausência no Mundial de 1978. O desaire não impediu que Bento se afirmasse como um dos melhores guarda-redes portugueses de todos os tempos, sendo dono da baliza das quinas durante dez anos.



Alguns estreantes titulares na seleção em jogos «a doer»

1961- Eusébio (Luxemburgo-Portugal, 4-2, apuramento para o Mundial-62)*

1965- Jaime Graça (Portugal-Turquia, 5-1, apuramento para o Mundial-66)*

1965- Carvalho (Portugal-Checoslováquia, 0-0, apuramento para o Mundial-66)

1968- Jacinto João (Portugal-Roménia, 3-0, apuramento para o Mundial-70)*

1971- Malta da Silva (Bélgica-Portugal, 3-0, apuramento para o Euro-72)

1976- Bento (Portugal-Polónia, 0-2, apuramento para o Mundial-78)

1978- Alberto (Áustria-Portugal, 1-2, apuramento para o Euro-80)*

1983- José Luís (Portugal-Finlândia, 5-0, apuramento para o Euro-84)*

1985- Venâncio e Frederico (Checoslováquia-Portugal, 1-0, apuramento para o Mundial-86)

1985- José António (Alemanha-Portugal, 0-1, apuramento para o Mundial-86)

1986- Zé Beto e Fernando Mendes (Portugal-Suécia, 1-1, apuramento para o Euro-88)

1987- Miguel (Suécia-Portugal, 0-1, apuramento para o Euro-88)

1990- Leal e Nelo, (Portugal-Holanda, 1-0, apuramento, Euro-92)

1993- Abel Xavier e Rui Costa (Suíça-Portugal, 1-1, apuramento, Mundial-94)

1993- Folha (Estónia-Portugal, 0-2, apuramento, Mundial-94)*

1994- Sá Pinto (Irlanda do Norte-Portugal, 1-2, apuramento, Euro-96)

1997- Beto (Alemanha-Portugal, 1-1, apuramento, Mundial-98)

2000- Bino (Holanda-Portugal, 0-2, apuramento, Mundial-2002)

2001- Ricardo, Frechaut e Petit (Irlanda-Portugal, 1-1, apuramento, Mundial-2002)

2005- Alex, (Portugal-Eslováquia, 2-0, apuramento, Mundial-2006)

2006- Raul Meireles (Portugal-Cazaquistão, 3-0, apuramento, Euro-2008)

2007- Miguel Veloso (Azerbaijão-Portugal, 0-2, apuramento, Euro-2008)

2007- Pepe (Portugal-Finlândia, 0-0, apuramento, Euro-2008)

2010- João Pereira (Portugal-Dinamarca, 3-1 apuramento, Euro-2012)

2013- André Almeida (Portugal-Israel, 1-1 apuramento, Mundial-2014)

* Marcou na estreia

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