Loucura. Risco calculado. Aventura. Vítor Gamito usou as três palavras durante uma conversa com a Maisfutebol Total para explicar a questão que todos os que leram a notícia do momento no ciclismo nacional estarão a fazer: afinal, porquê?

O vencedor da Volta a Portugal de 2000 assinou pela LA-Antarte e, dez anos depois, a caminho dos 44 no bilhete de identidade, está de volta ao pelotão nacional com uma ambição única: ter uma despedida condigna da estrada, algo que, por doença, foi impedido de fazer naquele ano de 2004.

Após a Volta ao Algarve, que tinha como figura de cartaz Lance Armstrong, Gamito foi informado que tinha um bloqueio aurículo-ventrícular de grau 3. Um problema cardíaco que tinha uma sentença definitiva: abandono imediato da competição.

E assim foi. Era o ponto final numa carreira que teve como momento áureo a vitória em 2000 na «Grandíssima» e que colocou um ponto final no rótulo de
Poulidor português. Para trás haviam ficado quatro segundos lugares (1993, 94, 97 e 99), o último traumático, por ter deixado escapar a vitória no derradeiro dia para David Plaza (Benfica). 

Tudo isto numa carreira marcada por inúmeros azares, com quedas em momentos importantes, acidentes fora de competição, uma Volta a Portugal a sofrer com hemorróidas e outra com anemia. Teve uma fratura exposta num braço, foi três vezes operado ao joelho. Um sem número de limitações, enfim, que o impediram, quem sabe, de ter um êxito maior, sobretudo a nível internacional, onde só teve uma aventura e também ela azarada. Era aquele corredor a quem parecia acontecer de tudo um pouco...

Durante estes dez anos, Gamito, um metódico no treino e pioneiro na sua análise, não esteve parado. Bem pelo contrário. Resolvido o problema cardíaco, que garante estar curado, apostou no BTT. Participou em provas nacionais e internacionais, ganhou cá dentro e lá fora e, assim, despertou o «bichinho» da estrada. «Quem é competitivo, é competitivo a vida toda», garante.

E Gamito quis provar.

Quem disse que a partir dos 40 não se pode competir?



«Cheguei a um ponto em que senti que o BTT já era um desafio que estava a ficar demasiado pequeno para o que eu queria. Um dia cruzei-me numa prova com um ciclista que está ainda em atividade e ele disse-me que eu ainda tinha nível para ir à Volta a Portugal. Pensei que estava a brincar comigo», conta.

Mas não estava. E o próprio Gamito ficou a pensar naquela ideia. «De vez em quando lá achava: isto é uma loucura, mas depois pensava melhor.
Uma loucura porquê?», questiona.

«Por que é que um ciclista com mais de 40 anos não pode fazer uma Volta a Portugal? Quem disse que não pode ser feito? Não há nada nos regulamentos que o impeça!», insiste. E a ideia cresceu.

Gamito garante que o seu nível físico não é muito diferente do que já teve. «Quero mostrar a todos que ter mais de 40 anos não é impeditivo de nada. É um risco, eu sei, mas eu gosto de riscos controlados. Acho que é como saltar de para-quedas para mim que não gosto de ar. É um desafio», assume.

A LA-Antarte foi uma das duas equipas que o português abordou. De ambas obteve a mesma reação: «Ficavam incrédulos. Queres mesmo voltar? Eu gostava de tentar, mas se calhar é maluquice minha, esqueçam lá isso...»

Mário Rocha, diretor da equipa que agora será sua, telefonou-lhe e marcaram um jantar. «O casamento ficou feito ali», conta Gamito. «A LA-Antarte é uma equipa 100 por cento nacional, conheço alguns do elementos e oferece-me todas as condições. Era mesmo o que eu andava à procura», conta.

«Pelo menos serei capaz de ir ao carro buscar água»



Agora o objetivo passa por...desfrutar. Sentimento estranho para quem quase sempre apareceu na Volta a Portugal com o rótulo de favorito.

«Na minha primeira participação na Volta, com 23 anos, fiz logo segundo e a partir daí fui sempre colocado no lote dos favoritos. Nunca fui sem pressão e, por isso, nunca desfrutei da competição», lamenta.

A edição de 2014 será, assim, a despedida perfeita. «Tenho a consciência que será mesmo a última vez. Quero desfrutar cada dia da Volta. Há dez anos não sabia que seria a última», lembra.

Ganhar é palavra que ainda não entra no vocabulário de Gamito, mais preocupado em conjugar o verbo trabalhar. Promete dar «110 por cento», para ser «10 por cento a mais do que todos os outros» e não coloca qualquer meta que não ser um bom elemento do grupo.

«Quero ser um elo importante no trabalho da equipa e depois eles que vejam o que querem de mim. Eu próprio tenho dúvidas, são muitos anos. Mas acho que, mais não seja, sou capaz de ir ao carro buscar água», atira, entre risos.

Vítor Gamito vai participar em cinco provas durante a temporada, sendo que uma delas é, naturalmente, a Volta a Portugal. «Também já está certo que estarei nos Campeonatos Nacionais de Contrarrelógio e de Linha», revela.

Por falar em contrarrelógio, quisemos saber se continua a ser uma especialidade do português. «Boa pergunta», diz.

«No BTT não há contrarrelógios, ou melhor, todas as provas são um contrarrelógio. Julgo por isso que continuo a ser bom aí e na montanha. As pessoas não mudam, tenho é de encontrar a melhor relação peso-potência e para isso preciso perder algum peso para os níveis que tinha quando era profissional. É algo que conseguirei fazer facilmente com a rotina profissional de treino», explica.

Os problemas que o obrigaram a desistir, há dez anos, também estão resolvidos. «Tenho feito exames com bastante regularidade, ainda agora irei fazer mais e em fevereiro fiz um check-up. Os problemas cardíacos curam-se», afirma.

«Na altura o que aconteceu foi uma sobrecarga de treino que me provocou problemas. Tive um bloqueio auriculo-ventrícular de grau 3. As pessoas não sabem, mas todos os atletas de fundo têm bloqueios auriculo-ventrículares e têm de ir gerindo os graus com cuidado. Com grau 1 ou grau 2 está controlado, grau 3 é impeditivo de competir e foi o que me aconteceu», continua.

Assim poderá, então, ter a despedia que sempre sonhou e matar saudades do que sente mais falta: o apoio do público, algo que não existe no BTT.

«Mal comecei a pensar nisto, lembrei-me logo das subidas à Senhora da Graça e à Serra da Estrela. Fui partilhando vídeos de alguns desses momentos na minha página de Facebook, onde tenho cerca de 25 mil seguidores, e começaram logo a dizer que iam voltar à estrada para me apoiar. Até estou com medo que eles vão mesmo todos...», brinca, para fim de conversa.

Recorde a vitória no contrarrelógio decisivo de 2000 face a Claus Moller: