Giuseppe Meazza, Milão. 5 de maio de 1991. O palco do conto de fadas, com 78278 figurantes nas bancadas.

A Samp de Vujadin Boskov visita o Inter de Giovanni Trapattoni e do trio de alemães coroados campeões do mundo há menos de um ano a quase 600 quilómetros para sul, no Olímpico de Roma: Brehme, Matthäus e Klinsmann. Os de Génova avançam para a partida com três pontos de vantagem a quatro jornadas do fim, mas a desconfiança persiste: nunca antes ganharam o scudetto.

«Além de ser um grande treinador, era um grande psicólogo e uma pessoa muito inteligente», lembra o guarda-redes Gianluca Pagliuca sobre o treinador jugoslavo, entretanto falecido. A conquista desse título italiano é a obra de arte da vida de Boskov, que falharia por pouco a conquista do título europeu, no ano seguinte, pela mesma Sampdoria em Wembley, só um livre de Ronald Koeman, já no prolongamento, derrubará os italianos e entregará o caneco ao Barcelona. «Na minha vida ganhei coisas, mas o scudetto com a Sampdoria foi o troféu mais bonito e mais doce, porque ganhei-o na liga mais difícil e competitiva que existe no mundo, e porque foi o primeiro do clube em metade de um século de existência. É como quando nasce o nosso primeiro filho, a alegria é maior.»

Vialli e Mancini

O técnico constrói a sua squadra em torno de Pagliuca, dos veteranos Pietro Vierchowod e Toninho Cerezo, da irreverência e velocidade do calvo Attilio Lombardo e dos golos dos cirúrgicos Gianluca Vialli – então com muito mais cabelo do que hoje em dia  – e Roberto Mancini  que, na atualidade, ocupa curiosamente, pela segunda vez, o banco dos mesmos nerazzurri que ajudou a abater. Uma equipa de trabalho, que se desdobra em contra-ataques devastadores. É assim, claro, que derruba o Inter no seu próprio estádio e embala em definitivo para o primeiro e único título de campeão da sua história.

«Jogávamos sem preocupações, éramos livres. Talvez não fôssemos a equipa com mais talento, mas Boskov lembrava-nos sempre que não seríamos nada sem trabalho», recordaria depois Roberto Mancini, citado pela Gazzetta dello Sport.

Um 0-2 que podia ter sido 10-4

Talvez, apenas talvez, tenha sido o jogo de título mais emocionante de todos os tempos, com todos os riscos de falhanço que essa sentença possa acarretar. Na altura, a vitória vale dois pontos, o resto é igual aos tempos modernos. O empate deixaria os genoveses bem encaminhados para a festa, com os mesmos três pontos de avanço e seis por disputar, mas o triunfo acaba mesmo com todas as contas.

Somadas as oportunidades e todas as estatísticas, o balanço é incrivelmente desfavorável aos futuros campeões no final. 24 remates nerazzurri contra seis. 13 cantos contra um. Pagliuca consegue 14 defesas, incluindo um penálti do especialista Lothar Matthäus. Já, curiosamente Walter Zenga, hoje treinador dos genoveses, nem uma. Acabou 0-2, mas podia ter fechado com 10-3 ou 10-4.

A atacar desde o pontapé de saída… adversário

O Inter dá o mote logo na saída, que pertence à Samp. Rouba a bola e começa o assalto à baliza de Pagliuca.

O drama começa cedo para as duas equipas. Antes do intervalo, Jürgen Klinsmann vê um grande golo ser-lhe anulado por fora-de-jogo. No mínimo discutível. Seria o culminar perfeito para a incansável máquina ofensiva do Inter, que já criara inúmeras oportunidades, mas o auxiliar tem a bandeira bem levantada. Não há nada a fazer.

Pouco tempo depois, Mancini cai na área e Bergomi não esconde o seu descontentamento. Entende que o avançado rival simulou. Juntam cabeças e o árbitro D'Elia di Salerno entende que tem de fazer da situação um exemplo. Vermelho direto a ambos.


Capa do Guerin Sportivo

Um Meazza que se recusa a desistir

Aos 61 minutos, e apesar da pressão dos homens de Trap, Beppe Dossena marca o primeiro para os visitantes com um grande tiro de fora da área, Vialli tinha liderado o contra-ataque a criado o espaço necessário. Seria suficiente?

O Inter está longe de atirar a toalha. Nem o faz então, nem dez minutos depois. Entra em erupção quando Berti cava um penálti, não vacila quando Matthäus o desperdiça, contra o corpo de Pagliuca. Encontra razões para continuar acreditar quando os deuses saem em seu auxílio, por duas vezes na mesma jogada. Dossena liberta Lombardo, que acerta no poste, e Vialli é negado em cima da linha, na sequência da jogada.

Receção orientada para o scudetto

Vialli não falha nunca duas seguidas. Aos 76, recebe com toda a intenção para deixar de imediato Ferri fora da jogada, passa Zenga e remata para as redes. Só então o estádio percebe que acabou.

É o primeiro campeonato para a Samp, e o fim de ciclo de Trapattoni em Milão. Segue para a Juventus e deixa o Inter a atravessar um deserto de 16 anos até ganhar novo scudetto.

O conto de fadas dos genoveses. Afinal, quem esperaria tal feito? O Nápoles era o campeão, e ainda tinha Maradona. O Milan de Arrigo Sacchi acabara de vencer a Taça dos Campeões Europeus. O próprio Inter tinha ganho o título, dois anos antes, por 11 pontos de vantagem e possuía nos seus quadros os três melhores jogadores da Mannschaft campeã do mundo. Até a Juventus tinha gasto milhões nas contratações de Roberto Baggio, Hässler e Julio Cesar.

Que grande conquista! Que grande Samp!


O plantel da Samp

INTER Zenga; Bergomi, Stringara (Pizzi, 69), Ferri e Brehme; Paganin, Bianchi e Berti; Matthaeus; Klinsmann e Serena

Suplentes não utilizados: Malgioglio, Mandorlini, Baresi e Iorio

SAMPDORIA - Pagliuca, Mannini, Pari, Vierchowod e Invernizzi; Pellegrini, Cerezo, Dossena (Bonetti, 87) e Lombardo; Mancini e Vialli (Lanna, 90)

Suplentes não utilizados: Nuciari, Mikhailichenko e Branca

O JOGO COMPLETO:


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1970: Itália-Alemanha, o jogo do século
1973: Ajax-Bayern, o futebol nunca foi tão total
1974: RFA-RDA, o dia em que a Guerra Fria chegou ao Grande Círculo
1982: França-Alemanha, o jogão que o crime de Schumacher abafou
1986: Argentina-Alemanha, a vitória de uma nova religião
1994: Milan-Barcelona, o fim do sonho do Dream Team
1994: Leverkusen-Benfica, empate épico sentido como grande vitória
1999: Bayern-Manchester United, o melhor comeback de sempre
2002: Real-Leverkusen, a marca de Zidane e dos Beatles de Madrid
2004: Holanda-Rep. Checa, o futebol de ataque é isto mesmo
2004: Sporting-FC Porto, o clássico da camisola rasgada
2005: Milan-Liverpool, o fim do paradigma italiano
2005: Argentina-Espanha, a primeira página da lenda de Messi
2009: Liverpool-Real Madrid, pesadelo blanco aos pés da besta negra
2009: Chelsea-Barcelona, Ovebro vezes 4, Iniesta e o início do super-Barça​

ANATOMIA DE UM JOGO é uma rubrica de Luís Mateus ( @luismateus   no Twitter), que recorda grandes jogos de futebol do passado. É publicada de três em três semanas na   MFTotal       .