Primeiro os factos.
 
O Liverpool despediu Brendan Rodgers, o que significa que terminou a etapa do quarto treinador nos últimos cinco anos do clube.
 
Nada disto seria particularmente relevante se o Liverpool não tivesse tido nos últimos cinco anos tantos treinadores quantos os que teve nos vinte anos antes disso. Ou nos trinta anos antes desses vinte, que por sua vez antecederam estes últimos cinco anos.

É claro que a contratação de Jurgen Klopp é uma excelente notícia. Fica mais bem servido: um grande treinador num grande clube. Mas isso não muda o essencial.
 
É o essencial, meus caros, é que o Liverpool está a abandonar conceitos nobres: está a perder a noção de identidade, de estima e de lealdade. Está a fragilizar o que tem de mais saudável: o código genético.
 
Valeria a pena recordar aqui, se calhar, o nome de Bill Shankly, o treinador que orientou o clube durante quinze anos e que um dia, quando o guarda-redes lhe pediu desculpa por ter sofrido um frango por entre as pernas, lhe atirou um desarmante: «A culpa não é tua, miúdo. A tua mãe é que não devia ter aberto as pernas.»
 
Ou Bob Paisley, o adjunto de Bill Shankly que lhe sucedeu durante nove anos e que herdou do antigo chefe de equipa o humor severo.
 
Certa vez estreou um miúdo chamado Adam Kennedy, que teve uma exibição desastrada. Perguntaram-lhe o que tinha dito no fim do jogo ao rapaz e Paisley foi impiedoso. «Vou-te ser honesto: mataram o Kennedy errado».
 
Eram homens com história, e cheios de histórias portanto: que traziam na pele a marca do futebol e na alma o símbolo do Liverpool. Homens enfim que deixaram um carimbo.
 
Juntos conquistaram nove títulos de campeão inglês, três Taças dos Campeões Europeus e duas Taças UEFA. Ganhavam muitas vezes e sorriam ainda mais.
 
«As pessoas falam dos bons momentos, mas é preciso lembrar que também estive aqui nos momentos maus: houve um ano em que ficamos em segundo», brincou Bob Paisley.
 
A história do Liverpool, contudo, não se faz só de vencedores. Rafa Benítez foi treinador do clube durante seis anos, e Rafa Benítez foi o homem que um dia, durante uma palestra em Dublin, chamou ao palco um aluno para o ajudar a fazer uma demonstração.
 
O aluno caminhou acanhado, chegou junto a Benítez e segredou-lhe um desarmante «treinador, estou com uma ereção». O microfone de lapela amplificou a frase, o estudante saiu da sala e o treinador ficou sozinho no palco a levar com as gargalhadas da plateia.
 
Mas Benítez é assim: um fatalista.
 
O que não quer dizer que o Liverpool o tenha despedido ao primeiro fracasso. Nem ao segundo, nem ao terceiro. Nem sequer ao quarto. Foram seis anos.
 
Porque o Liverpool, e o futebol inglês, tem uma noção de memória, de família e fraternidade que mais nenhum futebol tem no mundo. Ou antes, tinha uma noção de família. Já não tem: ou pelo menos tem cada vez menos.
 
Descaracterizou-se à boleia de milhões de libras de Rupert Murdoch, e da industrialização que se lhe seguiu. Treze dos vinte clubes da liga inglesa mudaram de treinador no último ano e meio, por exemplo.
 
O que só quer dizer uma coisa: o futebol inglês tornou-se precipitado com as escolhas, impaciente com os resultados e violento com as decisões. Está cada vez mais latino, e isso é uma péssima notícia para o encanto que o tornava especial.
 
Depois dos factos, esta é a opinião.
 
Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sexta-feiras de quinze em quinze dia