O futebol é um campo de pulsões: de felicidades e misérias, de paixões e cóleras, de amores e indignações. É um campo de euforias, de entusiasmos, de glórias e fracassos. Mas é também um campo, e isto não é em nada menos importante, de solidariedade.
 
O que aconteceu terça-feira em Wembley, por exemplo, é arrebatador.
 
O que o mundo viu foram duas nações historicamente rivais unidas num abraço contra a crueldade. O que é curioso porque quando se escreve sobre futebol escreve-se sobretudo sobre os heróis do relvado, amados e odiados, submetidos a pressões absurdas e brutais.
 
Em Londres, porém, os heróis foram outros: os heróis fomos todos os que nos unimos contra a desumanidade, a selvajaria e a barbárie.
 
A voz daqueles oitenta mil adeptos a cantar o hino francês em Wembley foi também a nossa voz, como já tinha sido nossa a voz das centenas de pessoas que cantavam a mesma Marselhesa enquanto eram evacuadas do Stade de France.
 
Sobre isso, não há dúvidas.
 
No entanto não deixa de ser curioso que em 2001, por exemplo, a Marselhesa naquele mesmo Stade de France foi ruidosamente assobiada antes de um França-Argélia. Voltou a sê-lo uns anos depois num França-Tunísia: nem a voz de uma cantora contratada pela organização conseguiu silenciar os apupos.
 
Nessa altura a sociedade respondeu com o que faz tão bem: varreu os sinais para debaixo do tapete. Mas era óbvio que alguma coisa não estava bem na sociedade francesa. Como não está na inglesa, na belga, na holandesa ou, felizmente menos, na portuguesa.
 
Não quero com isto diminuir a culpa dos fundamentalistas. Não quero. Bem pelo contrário, não há justificação imaginável para o terrorismo. Nem sequer as injustiças sociais das nossas comunidades explicam que alguém pegue numa arma e mate inocentes.
 
No entanto, e feita esta ressalva, era importante perceber que a sociedade ocidental se tornou terreno fértil para a manipulação mental e, claro, para os fundamentalismos.
 
Por alguma razão os assassinos de Paris tinham nacionalidade francesa.
 
Por alguma razão também, já agora, seis dos terroristas portugueses do Estado Islâmico passaram por Leyton, um dos bairros mais pobres e com mais desemprego de Londres. Alguns dos quais nunca foram muçulmanos: um deles até recebeu educação católica. Mas a religião está longe de ser o maior problema. É só um pretexto, um elemento na génese.
 
Mais importante do que a religião é a injustiça social: a distribuição irrazoável da riqueza. A condenação de milhares à pobreza para fabricar uns quantos ricos.

Muitos bairros das grandes cidades tornaram-se guetos de revolta, de cólera e de ódio. Habitados por emigrantes de segunda geração, que nasceram e cresceram no país, sem os pais em casa porque tinham de trabalhar dez horas para ganhar 500 ou 600 euros.
 
O bilhete de identidade diz-lhes que são cidadãos de pleno direito, como os outros miúdos com quem cresceram, mas o bairro, e em algumas circunstâncias a cor da pele, diz-lhes o contrário. Por isso tornam-se terra propícia à manipulação dos instintos mais animalescos.
 
Naquelas mentes deturpadas e de abundante baixa auto estima há um sentido perverso qualquer quando alguém lhes diz que podem integrar um grupo forte, que podem ser poderosos, que podem ter o mundo inteiro a temê-los e 72 virgens à espera deles no céu.
 
Por isso largam tudo, largam família e amigos, e vão. Para um dia voltarem assassinos.

Ontem foi da Al-Qaeda, hoje é do Estado Islâmico, amanhã será do Boko Haram, da Irmandade Muçulmana ou de outro grupo radical qualquer.
 
A verdade, portanto, é que o terrorismo não se combate apenas com bombardeamentos na Síria: combate-se também nas nossas cidades, ao fundo da rua, à porta de nossa casa.
 
Combate-se com a construção de uma sociedade mais justa, democrática e tolerante.
 
Combate-se enfim com a política da terra queimada: não deixar terra fértil onde os fundamentalistas possam lançar as sementes do ódio, da violência e da fúria.
 
Um pouco como acontece no futebol, e era aqui que queria chegar desde o início.
 
Provavelmente em nenhum outro campo existe tanta justiça quanto no futebol: um espaço onde todos têm as mesmas oportunidades, e as mesmas responsabilidades. Ricos e pobres, loiros e morenos, europeus e asiáticos, cristãos e budistas.
 
Basta querer, e já agora ter alguma sorte, talento e muita disponibilidade para trabalhar. O futebol aceita-os a todos, disposto a premiá-los perante uma única hierarquia.
 
A hierarquia do mérito.
 
Nesta altura vale a pena regressar ao início do texto para dizer que o futebol é um campo de solidariedade, sim, mas é mais do que isso. É um campo de várias virtudes, para o qual a sociedade devia olhar se aceitar tirar os óculos do preconceito.
 
Box-to-box» é um espaço de opinião de Sérgio Pereira, jornalista do Maisfutebol, que escreve aqui às sexta-feiras de quinze em quinze dia