[artigo publicado originalmente a 26/10/12]

23 de novembro de 2010: Sp. Braga-Arsenal, 2-0

O Braga era uma criança engraçada. Vestia-se bem, com um estilo burguês importado do estrangeiro, que misturava com as raízes que eram suas. Minhoto com orgulho, de sotaque carregado. E algum som de berimbau e pandeiro pelo meio.

Era simpático, diziam. Popular, sem se esforçar muito. Mas o Braga era, também, um rapaz ambicioso que sonhava ser como o seu ídolo, o Arsenal, um riquinho que tinha conhecido em Londres. O Braga via-se ao espelho à espera de ver o Arsenal do outro lado. Ou, pelo menos, algo parecido. E vivia feliz assim.

Era pena porque, no fundo, o Braga podia fazer uma revolução, mas era inocente para o perceber. Fantasiava disparar uns mísseis, de quando em vez. Chamava-lhes Barroso. Imaginava uns raides para marcar terreno. Chamava-lhes Karoglan. Conversava com os mais velhos, como o mestre Cajuda e o mestre Jesualdo, para tentar perceber como se fazer notar. Como ser mais parecido com o Arsenal. Sabia que corria o risco de deixar de ter tantos amigos. Mas não se importava, porque estava farto de ser apenas mais um.

O Braga já tinha tido as suas discussões, é claro. Era um rapaz normal e havia pessoas com quem se dava pior. Com o seu vizinho, o Guimarães, por exemplo, não tinha grandes conversas. Nunca soube ao certo porquê, mas diziam-lhe que eram guerras de famílias. Coisas antigas. O Braga aceitava e cumpria a tradição.

Durante muito tempo, o Braga tinha medo de crescer. Era um nostálgico, agarrado às memórias dos amigos de sempre. O Odair, o Jordão, o Toni ou o Formoso. Era feliz assim, aquilo chegava-lhe. Mas, dentro de si, começou a ganhar a ideia de alargar horizontes. Percebeu que podia ter mais.

Arranjou novas companhias, fez outras amizades. Conheceu gente que não interessa, como o Bordi, o Curcija ou o Britez. Faz parte. Mas soube ver quem realmente poderia ajudá-lo a chegar onde queria.

E ganhou confiança. Já era um rapaz adulto, sabedor, atrevido e arrogante. Continuou a não falar com o vizinho Guimarães, mas comprou outras guerras. Ninguém sobe na vida sem criar controvérsia.

Só lhe faltava uma coisa: desligar-se de vez do passado. Em criança, chamavam ao Braga o arsenalista, por causa daquela mania de querer ser como o Arsenal. Mas quando o Braga cresceu, deixou de achar tanta piada àquela alcunha. E tentou, ele próprio, cunhar outra. «Chamem-me guerreiro», sugeriu. Queria mudar a sua imagem.

E para tirar tudo a limpo, aproveitou uma viagem do Arsenal para os seus lados e acertou contas. Um encontro que foi tão diferente do que tinha projetado em criança...

Já não tinha vontade de pedir autógrafos, de tirar fotografias ou, sequer, de o cumprimentar. Queria mostrar-lhe que tinha crescido. E fê-lo. Levou os amigos novos, ouviu os conselhos de outro mestre, o Paciência, e puxou o Arsenal para uma conversa. Falaram, falaram, falaram. O Braga não queria ser apanhado em caminhos travessos e ficava à espera da iniciativa do inglês. Depois respondia, como lhe tinham ensinado.

Até que o Matheus, um dos novos, se fartou daquilo e arrasou a autoestima do inglês. Dois argumentos certeiros, mesmo no final da conversa. O Arsenal corou. O Braga tinha razão no que dizia. Estendeu-lhe a mão e aceitou-o como um igual. Era o triunfo que o Braga precisava. O desafio final para a emancipação. No more Mr. Nice Guy.

Naquele dia, o Braga chegou a casa feliz e olhou para o espelho. Já não via os sonhos antigos de ser parecido com o Arsenal, as projeções das ilusões de criança. O Braga viu-se apenas a si, nitidamente. Sorriu e atirou-se para cima da cama. «Quem é que vou chatear agora?»

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