Sei que acabámos de passar pelo tempo dos corações inflamados, actos magnificentes, concertos Strauss, colectânias e CD de canto lírico e gregoriano, discursos políticos de regresso à prosperidade e, infelizmente, respostas estúpidas sobre o valor do salário mínimo em programa de TV. O futebol fez um compasso de espera, à procura de um Xamã, um ilusionista poderoso, capaz de fazer desaparecer a Muralha da China debaixo de um manto de cetim vermelho.

Olhou para o lado em busca de um líder, um regente depois de Maradona, que conduzia homens, e não ratos, com flauta invisível e vingando-se de uma nova Hamelim. Ou um Napoleão de caneleiras e cabelo desgrenhado, de mão ao peito, protegendo o símbolo do futebol nas Pampas. E quem não associa o Pelusa a Guevara nessa imagem que correu mundo, de olhos fechados sentado num campo à beira da estrada, qual revolucionário de convicções inabaláveis e capaz de escrever o seu nome na história para sempre? O trono estava vazio, o futebol triste, o planeta foi a votos e escolheu Ronaldo.

Ctrl, Alt e... Del com o indicador direito, os dedos alinhados para fechar em vozeirão grave de piano, depois de o meu Magalhães ter feito blue screen. Temo que um Sir Humphrey qualquer salte da BBC, faça ar de bife espantado e diga simplesmente Yes, Prime Minister! O futebol parou para recuperar fôlego, para se lembrar de grandes momentos e esquecer erros, insultos e dedos apontados em riste, discussões à volta do valor da galinha ou galo de combate em tempos de crise. Não havia dúvidas, não podia haver. Tinha de ser Cristiano!

Esperem, alguém sabe a diferença horária para a Índia? Há de certeza uma central de informações em Bombaim ou Calcutá. Uma voz de sinal na testa sussurra-me e eu respondo a poupar palavras como se fosse um telegrama. Phone number. Susanne Arundhati Roy, please. Qualquer coisa antes de sorry e do bip, confidente por vezes, hoje bem irritante. Ninguém como ela tinha percebido a simplicidade do mundo, quem melhor para vos explicar?

Há onze anos, quase 12, O Deus das Pequenas Coisas, poucos meses depois de ter ganho o Booker Prize, abriu-se à minha frente como manual de druida. Não me fez feliz ou triste, não se tornou no livro da minha vida ou, muito menos, aquela decepção que adoramos humilhar a cada conversa. Roy desceu do seu pedestal humano e passou a olhar o mundo ao nível da cintura. Ajoelhou-se ao tamanho de uma criança, coloriu cada cena com lápis de cor e feltro, viu pessoas feitas de papel de lustro - ou não viu, já não me lembro - e todas as coisas passaram a ter um peso diferente.

No dia em que o futebol fez justiça a um português e em que já se sente Messi a pulsar como o maior candidato para daqui a um ano, os grandes vencedores foram os dribladores, os reis das fintas, todos os que acham que o caminho mais curto para a baliza é uma sucessão de oitos. Hoje, apesar de feliz, prefiro olhar, como essa indiana de nome esquisito, para as coisas simples. Para a subtileza da finalização de Torres, para a inteligência de Kaká em todos os movimentos no Milan, para a geometria perfeita dos passes de Xavi. Todos eles, à sua maneira, são o Melhor do Mundo. Não terá a FIFA mais daqueles prémios em stock? Vá lá...

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, editor do Maisfutebol, que escreve aqui todas as semanas.