ô ô ô ô ô ô, lá lá lá... a a a
ô ô ô ô ô ô, lá lá lá... a a a

Tive razão
Posso falar
Não foi legal, não pegou bem
Que vontade de chorar, dói
Em pensar que ela não vem, só dói
Mas pra mim tá tranquilo, eu vou zoar
O clima é de partida,
Vou dar sequência na minha vida
E de bobeira é que eu não estou,
E você sabe como é que é, eu vou
Mas poderei voltar quando você quiser!

ô ô ô ô ô ô, lá lá lá... a a a
Demorô vai ser melhor...


De repente, quando olhamos para a direita, estamos atravessados numa via rápida e vem um camião na nossa direcção. Um dos grandes, não uma camioneta de caixa aberta, que essas são para meninos. E talvez seja maior hoje do que então, porque a memória engrandece o que não conseguimos esquecer, bom ou mau.

Provavelmente, teremos aquele pensamento rápido, que não pede licença. Um 

É agora!

Ou aquele 

Então é isto!

e não temos tempo para rever a nossa vida nesses segundos. São frames a mais e tudo sairia borrado e sem definição. Mas talvez tenhamos, nesses instantes de quase-morte, ou quase-quase-morte se quiserem ser rigorosos, a percepção do nosso fracasso. Ou, se fomos felizes, de tudo o que deixámos por fazer dos poucos planos realistas que desenhámos.

Sabem, aos 35 anos já se fez alguma coisa da vida. Ou pelo menos tentou-se. Um jogador se não o fez não é jogador. Acredito que ele pensasse em mais cinco, como qualquer keeper que se preze. Porque todos acham que podem lá chegar. Faz parte do seu destino. Talvez mais uma época por cá e depois o fim de carreira no seu Brasil. 

Helton-o-tipo-porreiro deve ter-se perguntado quando o pé direito não foi atrás do esquerdo e ficou para trás. Sem aviso, sem ranger como rangem nas tendinites, o tendão cedeu. Sem mais nem menos, partiu-se. E foi acompanhado por um grito de dor. E pelo acenar por ajuda. 

Porquê eu, que sou um tipo porreiro?

O Helton-que-aponta-para-o-céu-a-agradecer tem de ter-se questionado, antes de aceitar o infortúnio. Teve mesmo de ser. 

Porquê eu, meu Deus? 

E ninguém sabe. Eu não sei, nem nenhum de vós. Pelo menos, não terá muitos fracassos a lamentar. Ou coisas ainda por fazer.

Tal como qualquer um que nessa IC17, noite alta, tenha sido atirado para os rails, perdido os travões e feito pião até ficar parado como presa ferida à espera do fim, Helton pode levantar-se e sair. A coxear, mas pode sair. De gatas, se não houver outra hipótese. 

O camião, apesar de vir devagar (percebemos todos depois), bateu-lhe com força e magoou-o a sério, os danos foram mais do que materiais, mas depois de perder o medo de voltar a entrar nesse Clio branco, ou noutro qualquer, poderá ser de novo o que era. Ou parecido.

Muitos de nós ficaram a pensar no que nos deixava incompletos. Do fracasso de não ser pai, de não ter tido tempo de fracassar como marido. Das férias que não tirámos, do emprego que não tivemos, da casa que não gozámos. Mas ele não.  

      

Será duro, vai doer. Os meses vão passar, um colado ao outro. O relvado passará a ser um local distante, sem ligação direta a partir do ginásio. A Liga que os portistas já esqueceram vai acabar, com outros a festejar, a reclamar o título a que todos aspiram (acho que nem eles já acreditam); a seguinte vai começar com outro nome, provavelmente Fabiano, na baliza. E se lhe correr bem, vai ganhar raízes. Agarrar-se ao posto, entre os postes.

O ano vai chegar a perto do fim, e quando houver certezas de que o tendão não é ele todo calcanhar de Aquiles, a idade vai entrar na equação. E Fabiano tem mais hipóteses de sair a ganhar. A Helton resta-lhe abrir a porta e sair a sorrir, como quase sempre. Colocar os auscultadores e ouvir o pagode.



Façam-lhe justiça. Cometeu erros sim, mas também foi muitas vezes o Helton-das-defesas-decisivas. Nunca tão elegante quanto Patrício ou mesmo Artur, mas sentou de vez Baía, convencendo o exigente do Adriaanse. Um Baía de 37 ou 38 anos, mas mesmo assim Baía. Cardozo lembra-se de certeza daquela do ano passado na Luz, que até podia ter dado outras contas no fim. Ou não. Porque podia não ter mudado nada. 

Sempre descontraído mas ao mesmo tempo exigente, sempre comprometido com a equipa, sempre presente. Até agora. Doa quanto doer, demore o que demorar, Helton que se fixe no refrão.

ô ô ô ô ô ô, lá lá lá... a a a
Demorô vai ser melhor... 

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«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol. Pode segui-lo no  FACEBOOK e no  TWITTER. O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.