PLAY é um espaço semanal de partilha, sugestão e crítica. O futebol espelhado no cinema, na música, na literatura. Outros mundos, o mesmo ponto de partida. Ideias soltas, filmes e livros que foram perdendo a vez na fila de espera. PLAY.

SLOW MOTION:

«HERO: MEXICO 86» - de Tony Maylam
O caminho da primária para casa fez-se a correr. A mochila saltava, cheia de livros. Pesados. A lancheira cor-de-laranja, marca tupperware, batia-me nas pernas. Era a excitação da primeira vez.

Afinal, dali a poucas horas, duas talvez, eu ia ver o meu primeiro jogo de um Mundial.

Portugal-Inglaterra, 3 de junho de 1986. Ganhámos. Golo de Carlos Manuel, já perto do fim. É a minha memória consciente mais ida de uma transmissão televisiva de um Campeonato do Mundo.

Na minha infância não houve muitos instantes mais marcantes do que este. O primeiro dia na escola? Sim. A Primeira Comunhão? Não ia por aí. As caneleiras que o meu pai me deu antes de um treino na Constituição? Certamente que sim. A bicicleta BMX? Talvez.

Mas, seja como for, a estreia absoluta num jogo do Mundial, em direto, foi ali. Tinha oito anos, assistira em 1984 à eliminação de Portugal contra a França, no Europeu, mas nada me preparara para aquele jogo.

É importante sublinhar que por esses dias, logo no arranque da prova, Maradona era para mim um nome vago. Só isso. Estava até mais familiarizado com um tal de Saltillo. O tipo estava em todos os jornais, rádios, adiava a telenovela das oito, tinha de ser bom.

Por isso, sim, começar num Mundial com uma vitória sobre a Inglaterra só podia ser bom sinal. Senti que aqueles rapazes jogavam bem à bola. O meu pai e o meu avô pareciam-me menos otimistas. Enfim, só podia ser por prudência ou má vontade, não via outra hipótese.

Não juro, mas tenho a ideia que em 1986 não havia jogos todos os dias. De forma vívida, clara, recordo ter assistido já tarde, depois da meia-noite, à derrota contra a Polónia (1-0) e dias depois, num horário mais decente, à humilhação suprema diante de Marrocos.

Marrocos. Tinha-o visto uma vez de binóculos, no Algarve. Pelo menos foi o que me disseram na altura.

O Saltillo, que nem na caderneta de cromos aparecia, mandou Portugal para casa. Passei a torcer pelo Brasil, por influência paterna, resquícios do poema com bola de 1982. A 21 de junho (obrigado wikipédia), a França passou a ser um inimigo a abater nos campos de futebol.

Nos penáltis, Joel Bats, Michel Platini e companhia eliminaram a canarinha. Sem nenhuma pesquisa, juraria que Zico falhou o seu pontapé… (volto já)

Pois, confirmei agora: afinal não. Foi Sócrates. Maldita memória.

Bem, vamos ao que interessa. Foi aí, mais dia, menos dia, que conheci Diego Armando Maradona. Escrevi sobre isso há uns tempos. Primeiro Mundial, primeiras emoções, o Pique [mascote da prova] a entrar-me todos os dias pela casa adentro e D10S ali.

Uma composição de metafísica bailada, o Big Bang de bola colada ao pé esquerdo, a reincarnação de todos os imperadores aztecas nos relvados altos e secos do México. Diego.

O Mundial está outra vez aí. Volto a entusiasmar-me, a rasgar as carteirinhas de cromos, a por a mochila às costas e a correr para casa antes do jogo começar.

Não vejo melhor desculpa para voltar a ser criança.



PS: «DEREK» - de Ricky Gervais.
Derek Noakes é uma lição de vida. Autista, funcionário de um lar da terceira idade, apaixonado por animais e pelo bem estar dos que ama. Derek é mais uma criação genial de Ricky Gervais, depois do non sense brilhante em The Office e a inteligência acutilante em Extras.

Sou fã de Gervais. Nesta série eleva o humor a um grau sacro, adiciona-lhe um pozinho de drama, agita bem, mexe e cria um verdadeiro triunfo. Derek, insisto, é uma lição de vida. Reconciliem-se convosco, se necessário for, nestes episódios de 22 minutos.

E riam-se com as - permitam-me a expressão – javardices de Kev, as inseguranças de Hannah e os impulsos furiosos de Dougie, a personagem com o pior corte de cabelo na história do pequeno ecrã.




VIRAR A PÁGINA:

«A BOLA E O GOLEIRO» - de Jorge Amado.
O goleiro chamava-se Bilô Bilô e era de «uma incompetência espantosa». Chamavam-lhe Mão-Furada, Mão-Podre e Rei-do-Galinheiro.

A Bola chamava-se Fura Redes e era a alegria dos goleadores. «Fazia golos olímpicos, de letra, de bicicleta e de folha-seca». Reparem bem nas alcunhas da menina: Esfera Mágica, Pelota Invencível e Redonda Infernal.

A única incursão do mestre Jorge Amado – criador de Gabriela, Cravo e Canela, Tieta do Agreste e Capitães da Areia – resulta na paixão improvável entre um guarda-redes frustrado e uma bola galante.

Sobre Jorge Amado e o futebol, o meu colega e amigo João Tiago Figueiredo terá algo mais a dizer nos próximos dias. Diretamente do Brasil.


SOUNDCHECK:

«SPECIAL KIND OF HERO» - Stephanie Lawrence.
Lembrei-me do meu primeiro Mundial e encontrei uma cassete oficial da prova, perdida num armário da cave. Com esta música, dedicada ao Pelusa, um herói especial, a fazer capa. Maravilhosos 80's!

«I need you,
Need you with me,
my hero!
How you bring me,
Feelings i can not explain,
Capturing moments in time,
That the worls can never place»



PS: «I Never Learn» - Lykke Li.
A voz parece soltar-se das profundezas da Suécia. Três anos após o maravilhoso Wounded Rhymes, o regresso da menina que viveu em Portugal, sempre com alma escandinava. Arranjos majestosos, boas músicas, mas a impressão, talvez só minha, de que a obra me parece inacabada.

Há bons momentos, muitos, e este é o melhor: Gunshot. Percussão perturbante, guitarras enlutadas e um refrão poderoso, a esmagar espíritos, dores, tormentos, angústias. É negro, sim, mas enche-nos de esperança.  



ARTIGOS DO MESMO AUTOR

«PLAY» é um espaço de opinião/sugestão do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Pode indicar-lhe outros filmes, músicas, livros e/ou peças de teatro através do e-mail pcunha@mediacapital.pt. Siga-o no Twitter.