PLAY é um espaço semanal de partilha, sugestão e crítica. O futebol espelhado no cinema, na música, na literatura. Outros mundos, o mesmo ponto de partida. Ideias soltas, filmes e livros que foram perdendo a vez na fila de espera. PLAY.

SLOW MOTION:

«LOUCOS DE FUTEBOL» - de Halder Gomes
Bastava pegar numa moeda de 20 escudos. Depois, qual Giotto, o marcador de feltro fazia o círculo perfeito. Próximo passo: repetir o processo 16 vezes e multiplicá-lo pelo número de equipas desejado.

Faltava o mais importante. Escolher números, nomes e cores para as camisolas. Kostadinov era o oito e pedia riscas azuis e brancas. Para Ivkovic lá ia o número um e o preto debruado a verde a simular a camisola. E Valdo… a dez, claro, vermelha e garrida.

Tudo obedecia a um plano criterioso, estabelecido na noite anterior num bloco de A4. Cada um de nós era responsável por determinada fase, de maneira a que tudo batesse certo no nosso campeonato.

Última parte: recortar os jogadores, um a um, e aplicá-los na carica adequada. Ion Timofte, mais lento e tecnicista, ficava numa carcaça antiga. E enrugada, de preferência. Assim, deslizava menos bem no pano verde de Subbuteo. O realismo estava garantido.

Em contraponto, o veloz Isaías justificava uma cápsula lisa e reluzente. A lógica, pelo menos a nossa, não saía muito disto.

Um circo, enfim, montado à nossa medida. Os loucos do futebol, criativos, engenhosos, capazes de horas a fio em redor de um relvado montado na mesa da sala de jantar. Depois, bastava ter a certeza no toque, a convicção na arrancada e a fúria no remate.

Tudo alicerçado no poderoso dedo médio, naturalmente.

Vem isto - a saudável nostalgia, se mo permitem - a propósito de uma ida ao sótão dos meus pais. Do nada, perdido num saco preto camuflado pelo pó, o meu tesouro perdido. Os meus brinquedos dos anos 80: Masters of Universe, Playmobil, Lego, GI Joe e, no topo da hierarquia da saudade, as minhas caricas personalizadas para o Subbuteo.

Loucos, sim, e apaixonados por futebol. Qualquer um de nós podia ser a personagem principal deste filme brasileiro. Era só trocar a cidade de Fortaleza pela encantadora freguesia de Vila Nova da Telha, Maia.

O resto nós assegurávamos. Sempre na ponta do dedo médio.



PS: «BLUE RUIN» - de Jeremy Saulnier.
Premiada em Cannes, Ruína Azul é uma história clássica de vingança. Impiedosa, despojada de folclores, assente numa imagem suja e num protagonista marcante.

Macon Blair, no primeiro grande papel de uma carreira ainda curta, é Dwight e aninha-se atrás de uma barba sebosa e enigmática, pronto a reclamar as vidas de quem mais ama.

O thriller é complexo, por vezes labiríntico. Órfão de pai e mãe, Dwight acaba por ir parar às ruas e sobreviver no banco de trás de um automóvel azul. Arruinado. Os primeiros 18 minutos acompanham-no na busca frustrante por uma arma.

Diferente, está visto. A lembrar, talvez, a cinematografia dos irmãos Coen.




VIRAR A PÁGINA:

«ASÍ JUGAMOS» - de Diego Borinsky e Pablo Vignone.
Os 25 jogos mais importantes da seleção argentina espalmados em 500 páginas. Nalguns casos relatados na primeira pessoa pelo protagonista.

Menotti, Bilardo, Kempes, Valdano, Fillol, Pumpido, Palermo, Mascherano, Goycochea, Crespo, Ruggeri, Burruchaga, Ramón Díaz, Cambiasso, Brown, Ayala, Sorin, Sensini, e Ardiles.

Notou a falta de alguém?

Já agora, os autores fazem questão de definir o critério de escolha das 25 partidas «tão subjetivo e arbitrário» como a lista de 23 convocados do selecionador Sabella para o Mundial do Brasil.

Afinal, o que continha o bidão que Branco bebeu? Maradona foi vítima ou culpado em 94? Onde está a camisola que El Pibe usou no famoso jogo da mão de D10S? Irrecusável.

SOUNDCHECK:

«JACK’S HEROES» - The Pogues/The Dubliners.
Shane Macgowan não seria o primeiro nome a vir-nos à memória ao pensarmos em músicos apaixonados por futebol. Mas nem o carismático e desdentado vocalista dos The Pogues é totalmente indiferente à paixão exercida pelo desporto-rei.

Nesta composição, mais uma irlandesa, há uma ode a Jack Charlton e aos seus rapazes, em vésperas da entrada no Mundial-90.

Macgowan definha, embalsamado em álcool e enrouquecido pelo tabaco. E depois canta:

«They wear green
And they are beautiful
And their hearts are filled with love
They're as pure as any lily
And as gentle as the dove
They'll sing and cheer in harmony
Till their throats are cracked & sore
But there is no doubt
You'll hear them shout
When Jackie's heroes score»




PS: «Turn Blue» - The Black Keys.
As guitarras de Auerbauch a insinuar uma vénia a Hendrix ou aos Led Zepellin, a bateria de Carney a pulsar em batidas demoníacas, a produção de Danger Mouse a conduzir a dupla por caminhos provavelmente condenados à glória.

Ao oitavo álbum de estúdio, os rapazes de Akron, Ohio, superam as minhas melhores expetativas. «Fever» é o single óbvio, mas não se fiquem por aí.

Os sete minutos de «Weight of Love» reduzem a cinzas as escassas dúvidas iniciais e lançam-nos de cabeça ao âmago de um dos melhores trabalhos discográficos de 2014. Grande, grande cd.



ARTIGOS DO MESMO AUTOR


«PLAY» é um espaço de opinião/sugestão do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Pode indicar-lhe outros filmes, músicas, livros e/ou peças de teatro através do e-mail pcunha@mediacapital.pt. Siga-o no Twitter.