PLAY é um espaço semanal de partilha, sugestão e crítica. O futebol espelhado no cinema, na música, na literatura. Outros mundos, o mesmo ponto de partida. Ideias soltas, filmes e livros que foram perdendo a vez na fila de espera. PLAY.

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«AS MELHORES HISTÓRIAS DO FUTEBOL MUNDIAL» - de Sérgio Pereira.
Se este livro se fizesse acompanhar de uma bula, as indicações terapêuticas diriam algo como isto:

. indicado no tratamento sintomático de irritabilidade provocada pelo visionamento de futebol;
. aconselhado a nostálgicos desgostosos com os caminhos tomados pela sua modalidade favorita nos anos recentes;
. em caso de sobredosagem é urgente voltar atrás (ao capítulo I) e telefonar a um amigo para com ele partilhar a riqueza ingerida;
. o uso prolongado destas páginas pode provocar adição crónica e hipersensibilidade a discussões inócuas sobre o sexo dos anjos (vulgo arbitragem).

Creio ter sido suficientemente claro: esta obra, dedilhada pela mestria do jornalista Sérgio Pereira, é a minha receita de verão para reaprender a amar o futebol. Para esquecer a irrazoabilidade, a intolerância, o lado negro do jogo e respirar bem fundo antes de cada página.

São 140 crónicas individuais. Para folhear com carinho e um sorriso irredutível. Não há outra forma de dizê-lo: esta é um livro com boa memória e melhores recordações. O lançamento está agendado para o dia 6 de maio.

Declaração de intenções: o Sérgio Pereira é meu colega de redação, amigo há mais de uma década e um dos mais talentosos profissionais da sua geração. Mas ele já sabe isso tudo, não precisa de ler isto.

Sinto-me de coração cheio. Deixo-vos com estas pérolas retiradas das profundezas de alguns capítulos:

. «Na clínica há um que diz que é o Robinson Crusoé, há outro que pensa que é o Napoleão e ninguém acredita que eu sou o Maradona». MARADONA, após mais um cura de desintoxicação;

. «É um misto de sensações que eu tenho: é como ver a minha sogra conduzir em direção a um principício... no meu carro». TERRY VENABLES, quando treinava o Tottenham sobre a saída de Paul Gascoigne para a Lazio;

. «Não se lembra de quem é? Isso é ótimo. Diz-lhe que é o Pelé e manda-o de volta para o campo». JOHN LAMBIE, treinador do Patrick Thistle, quando soube que o avançado sofrera um traumatismo na cabeça durante um jogo;

«Se sou um bode expiatório? Expiatório sem dúvida, agora bode dispenso, muito obrigado», VALE E AZEVEDO;

«Mark Knoffler? É bom jogador, mas o Sporting tem o plantel fechado», SOUSA CINTRA. 




«LÁ EM CASA MANDO EU» - de Catarina Pereira e Manuel Neves.
Benfica e FC Porto – escrevo os clubes por ordem alfabética, calma Catarina e Manel (lá está, também os vossos nomes respeitam essa ordem) – debaixo do mesmo teto.

A dormir na mesma cama, a arrumar (espero eu) a mesma cozinha, a jantar na mesma sala. É possível? É. Porque se amam.

O Benfica É o Manel. Um médico capaz de escrever com brilhantismo. E sim, até isso é possível. Deixo uma passagem da minha crónica favorita, «Benfica, um conto noir».

«Estava deitado no meu escritório de ressaca. Doía-me a cabeça e o corpo e o meu hálito ainda fedia a whisky. Ultimamente, com a falta de casos, andava a sair mais à noite para esquecer a crise: ser detective privado em tempos de austeridade não compensa.

Foi aí que o telefone tocou (eu já não tinha casos há tanto tempo que nem me lembrava do toque do telefone). Quando atendi, a voz do outro lado soava preocupada.
"Detective M.?"
"Sim."
"Daqui é um adepto do Benfica. Vou precisar da sua ajuda."
"Farei o que puder."
"O Benfica desapareceu."(...)»


Como depreenderão, estas palavras não foram escritas recentemente. Têm dois anos. Perderam a atualidade, sim, mas mantiveram o génio.

Agora, um vislumbre ao outro lado da barricada. À Catarina e às prosas sobre o FC Porto. Mais uma vez, escolho um que me marcou: «Quero o meu M. de volta».

(…) «O problema é que, antigamente, durante estas semanas de horários inversos, entre as poucas palavras que trocávamos havia sempre espaço para o futebol. Por exemplo, num post-it meu para o M., a seguir a um “Deitaste o lixo fora?” podia vir perfeitamente um “Quando acordares vai ver a capa do Jogo para saberes o que o anormal do Jackson disse”. Por antigamente entenda-se o período da nossa relação pré-golo do Kelvin, tempos áureos e bonitos, em que conseguíamos equilibrar a doença que temos pelos nossos clubes com o nosso amor. Agora não é assim.» (…)


O livro nasceu num blog, o melhor blog sobre futebol e relações humanas em Portugal. Saltou para livro, renovado e embelezado com novas crónicas. É o segundo manual de instruções para amar o futebol que vos deixo hoje.

Aproveitem, é delicioso e já está à venda.




SLOW MOTION:

«OLD FIRM: FOOTBALL’S MOST DANGEROUS RIVALRY» - de Kev Kharas
. Um documentário brutal - é mesmo esta a expressão ideal - sobre a impossibilidade de harmonia entre os amantes de Celtic e Rangers. Uma viagem atribulada por bares bafientos e vielas esconsas de Glasgow, de mão dada com protagonistas pouco recomendáveis.

A história acaba com a despromoção administrativa dos protestantes e a certeza de que um não pode viver sem o outro. Para ver e refletir.



PS: «Grand Budapest Hotel» - de Wes Anderson.
Alguém descrevia o cinema do realizador Wes Anderson desta forma: um ornamento de ambientes visuais na busca de ideias emocionais e profundas. Desconheço o autor destas palavras, mas coloco-me ao lado dele. É precisamente isto.

Há vários pontos de contato entre Grand Budapest Hotel e as obras anteriores de Anderson, nomeadamente The Royal Tenenbaums e Moonrise Kingdom. A marca de autor está presente nas cores vivas, nos diálogos bizarros, no convite a caricaturar a humanidade.

Aqui, o filme segue um excelente Ralph Fienns no papel de Gustave H., um famoso concierge, e o seu inseparável lobby boy, Zero Moustafa. Uma agradável surpresa numa fase em que a qualidade dos filmes em exibição deixa muito a desejar.




SOUNDCHECK:

«GIVE HIM A BALL» - The Sultans of Ping FC.
Irreverência irlandesa, humor corrosivo, guitarras furiosas e paixão pelo futebol. Tudo junto, este cocktail explosivo resulta neste tema do início dos anos 90. Solte toda a adrenalina, grite e faça caretas ao espelho. Mesmo que o seu clube ande a perder vezes a mais:

«Give him a ball and a yard of grass/ He’ll give you a move with perfect pass/ Give him a ball and a yard of space/ He’ll give you a move with godly grace/ He ‘s a nice young man with a lovely smile/ A man can’t have no greater love/ Than give 90 minutes to his friends…(…)».



PS: «Crónicas da Cidade Grande» - Miguel Araújo.
Atrevo-me a dizer que este portuense, cantautor e genial contador de histórias, é a figura mais entusiasmante da atual cena musical portuguesa. Coloco-o ao lado de António Zambujo.

O novo álbum está nas lojas e justifica audição atenta. As letras são doces e nostálgicas, a melodia é mais rica do que no primeiro álbum, a evolução é evidente. Fiquem com um dos exemplares mais felizes.



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«PLAY» é um espaço de opinião/sugestão do jornalista Pedro Jorge da Cunha. Pode indicar-lhe outros filmes, músicas, livros e/ou peças de teatro através do e-mail pcunha@mediacapital.pt. Siga-o no Twitter.