Há duas referências incontornáveis quando se fala nos golos que balizam a carreira de Marco Van Basten. A primeira define o nascimento de um astro global que, aos 22 anos, já era demasiado grande para caber nas fronteiras estreitas da Liga holandesa. Aconteceu a 9 de novembro de 1986, no velho estádio De Meer, aos 71 minutos de um Ajax-Den Bosch. Na mesma baliza onde, com apenas 17 anos, marcara o seu primeiro golo profissional, em abril de 1982. Ainda hoje pode ser apresentado como um dos pontapés de bicicleta mais perfeito de todos os tempos, em qualquer pós-graduação sobre magia no século XX – e é bom lembrar, de passagem, que 1986 foi o ano em que Diego Maradona andou à solta pelo mundo:



A segunda referência marca o ponto mais alto da ascensão desse astro, menos de dois anos mais tarde. Aconteceu no Olímpico de Munique, a 25 de junho de 1988, quando os talentos conjugados de Van Basten e Gullit já dominavam o futebol italiano - nesse tempo o patamar supremo de qualidade e exigência. Aconteceu aos 54 minutos da final do Europeu entre a URSS e a Holanda, e deu à seleção laranja a maior conquista da sua história. E o facto de ter sido conseguido diante do melhor guarda-redes do seu tempo só ajuda a reforçar a lenda. Alguma uma final terá produzido algo mais belo do que isto?



Hoje, porém, não se trata do lançamento, ou do apogeu, do holandês que fez sonhar uma geração inteira. Mas, sim, de um ponto bem mais ignorado da sua trajetória: o momento em que o Cisne de Utrecht bateu as asas pela última vez, antes de descer à terra.

Um ano quase perfeito

Uns números para o contexto: no ano de 1992, Van Basten estava no auge dos seus poderes sobrenaturais. À exceção de um penálti falhado perante Peter Schmeichel, que custou à Holanda a revalidação do título europeu, tudo o resto foi perfeito: título italiano, melhor marcador da série A, terceira Bola de Ouro da France Football e prémio para o Melhor Jogador do Mundo, atribuído pela FIFA.

Em novembro, pouco depois de completar 28 anos, Van basten tem o mundo a seus pés e quebra todos os limites: no dia 8, contribui com um poker para a humilhação do Nápoles pós-Maradona (1-5 para o Milan no San Paolo!) e, no dia 25, repete a proeza diante do Gotemburgo, tornando-se o primeiro jogador a marcar quatro golos num jogo na novíssima Liga dos Campeões. O terceiro, num pontapé acrobático a fazer lembrar os tempos do Ajax, começava a fechar um ciclo, embora ninguém o soubesse.



Como uma nuvem negra no horizonte, que com o vento começa a ganhar dimensões insuspeitas, o tornozelo direito de Van Basten, alvo de dezenas de entradas bárbaras e três operações, volta a limitar-lhe os movimentos. Seguem-se mais três jogos sem golos, uma raridade. E a 13 de dezembro, diante do Ancona, as dores tornam-se insuportáveis. Van Basten é substituído aos 75 minutos e decide avançar para uma quarta operação, antes de viajar para Portugal, para receber o prémio da FIFA.

O tempo de paragem estimado é de dois meses. Mas passa um terceiro, e um quarto, sem sinais de melhoria. As preocupações aumentam no campo «rossonero», tanto mais que o Milan, comandado por Fabio Capello, vai desbravando caminho para uma terceira final europeia em cinco anos. É impensável que «San Marco» possa não estar lá.

Abril aproxima-se do fim, sem que Van Basten tenha voltado a competir. Finalmente, depois de muito sofrimento, terapias alternativas e alguns curandeiros pelo meio, o holandês regressa a 25 de abril, o feriado da Liberdade, também em Itália. Os 38 minutos diante da Udinese não entusiasmam, mas servem para pôr o mundo do futebol a festejar o regresso do melhor jogador da atualidade. Com a final a um mês e o «scudetto» no bolso, Capello gere com pinças a recuperação do seu número 9. Duas semanas depois do regresso, dá-lhe a titularidade diante do já despromovido Ancona, exatamente uma volta (17 jornadas) depois da lesão.

Ninguém poderia imaginar que esse jogo anónimo, a 9 de maio de 1993, assinala a última vez que o Cisne de Utrecht conseguiu abrir as asas e voar. Avançado completíssimo, Van Basten é fortíssimo de pé direito, quase tão forte com o esquerdo e um dos melhores do mundo a jogar de cabeça. E é com a cabeça que vai marcar o último golo da carreira, no seguimento de um canto na direita, de Donadoni, aos 37 minutos.

Não é um golo especialmente vistoso, em particular numa carreira que semeou joias com uma regularidade impressionante. E no entanto, se observarmos com atenção, o voo decidido, ao encontro da bola, aproximando-se do primeiro poste, é um bom resumo do que o fez ser tão especial: a elegância conjugada com a agressividade, a eficácia transformada em beleza, como poucos o tinham feito antes e poucos voltariam a fazê-lo depois. Pequena curiosidade histórica, em mais um ciclo que se fecha: o guarda-redes que sofre o golo, Nista, é precisamente o mesmo que, em setembro de 1987, tinha sofrido o primeiro dos seus 128 golos marcados pelo Milan.



Ainda ninguém o sabe, mas o futebol acaba de virar uma página triste. O primeiro golo de Van Basten em 1993, é também o último da carreira. O holandês, claramente limitado, ainda faz mais dois jogos, com a Roma e na final perdida da Liga dos Campeões, com o Marselha. Depois, decidido a recuperar de vez os problemas crónicos no tornozelo, arrasta-se de clínica em clínica, num calvário que dura dois anos.

No verão de 1995, com apenas 30 anos, e sem jogar há dois, Van Basten não resiste a tanto sofrimento e tanta esperança adiada: assume o estatuto de ex-jogador, sem condições, sequer, para um jogo de despedida perante os seus adeptos. Limita-se a passear pelo relvado, à civil, distribuindo acenos tristes e elegantes. No banco, Capello, com fama e proveito de ser um duro, não consegue segurar as lágrimas. Anos mais tarde, revendo as imagens, Capello desabafa: «Ainda agora isto me emociona. Estamos a falar do melhor avançado com quem trabalhei e senti na altura, como sinto agora, que o seu abandono prematuro foi uma tragédia. Para ele, para o futebol e para o Milan».