3 de fevereiro de 2007: Sporting-Nacional, 5-1

Imagino-o de cabelo grisalho e articulações enferrujadas. Talvez de pantufas, sentado à lareira e com um chá quente na mão, num local tranquilo, algures no Uruguai. A fama de bad-boy ficou para trás. Vejo-o nitidamente, com a mantinha a aquecer as pernas, as palavras já gastas pelo tempo mas um pensamento que perfura. Ouço-o murmurar. Um sibilado incessante, nada discreto.

75; 78; 89; 94.

75; 78; 89; 94.

75; 78; 89; 94.


Os números saem-lhe de cor. Ficaram para sempre. Ainda se lembra da sensação, do sabor do sucesso em cada gota de saliva. Mais um gole de chá e o refrescar da memória. O aquecimento, a entrada em campo para o lugar daquele português com o cabelo parecido com o do treinador. «Tonel!» atira. E sorri.

Carlos Bueno tinha meia hora para tentar fazer a diferença, quando o Sporting já perdia por 1-0. Deitou fora os primeiros 15 minutos, para manter a regra. Foi quase sempre assim em Alvalade. As oportunidades chegavam e fugiam sem que ele as travasse com as duas mãos. Era azar. Só podia ser azar.

Mais um gole no chá. Nova memória fresca. Nani na esquerda, centro largo. Bueno nas costas do brasileiro Alonso. Apoiado até. Golo. O árbitro aponta para o centro. Válido. Faltavam 15 minutos. O quarto de hora mais especial da carreira. Os seus 15 minutos de fama.

Portugal não foi uma paragem feliz para Bueno. Tinha nome de chocolate, mas, ao contrário do anúncio, nunca tinha dado ares de ser bom. Bueno é bom? Naquele quarto de hora, Bueno é, ou foi, ótimo.

75; 78; 89; 94.. Inesquecível. Números para jogar numa lotaria. Para estampar numa camisola que faça perdurar o momento. Mas Bueno não precisa. Os anos passam e aquele jogo fica.

O chá ainda dura. Dá para mais memórias. E o sorriso estampado de novo no rosto, tão fácil foi aquele segundo golo. Romagnoli, Benaglio não desvia e é só encostar. Iam dois. Ninguém sabia naquela altura, mas só ia a meio.

Aquela foi a noite dos quatro golos, dos quatro números, dos oito dígitos. 75; 78; 89; 94.. A memória nunca se apaga.

Liedson marcara. O jogo estava acabado e era esperar pelo último apito. Mas aquela era a noite em que tudo era permitido a Bueno. A noite para arriscar, saltar, tentar voar até. Talvez se safasse. Eu vi o jogo e acredito que sim. Os desejos de Bueno eram ordens.

Vieram mais dois. O 89 e o 94. No último, a imagem que marcou.

Tive dificuldades em lembrar exatamente como foram os golos. Nem o resultado ao certo eu sabia de cor. Mas nunca me esqueci daquela imagem. Bueno marcara o quarto, um poker em 15 minutos, e esbracejava furiosamente. Acabem lá com isto que já não estamos aqui a fazer nada. Foi a minha interpretação. Uma das várias possíveis.

Como se aquele esbracejar final dissesse o mesmo que o anúncio. «Bueno é bom! Estão a ouvir? Bueno é bom!». E foi, ali. Um pouco como o chocolate: foi bom, mas durou pouco.

«Cartão de Memória» é um espaço de recordação dos mais míticos jogos do século XXI, da autoria de João Tiago Figueiredo. Pode sugerir-lhe outros momentos através do Twitter.