Há qualquer coisa de argentino na fórmula de um génio. Talvez o pó de prata, mesmo que polvilhado apenas sobre as páginas da lenda – por nossa culpa e pelos espanhóis, que pensaram que nascia em torrente naquele estuário com o La Plata e o Uruguai –, seja suficiente para uma mutação inexplicável nos genes, e os torne especiais e, definitivamente, mais fortes. 

Mas, a ser assim, seria tudo demasiado fácil. Bastaria visitar um alquimista, daqueles de barba branca e vergados pela corcunda e pelo sinal gigante junto ao lábio. Entregávamos a receita, esperávamos que o fumo saísse de tubos e provetas e se espalhasse pelo chão, e sairíamos já com um projecto de craque, idade de infantil, pronto a estrear-se numa academia respeitável, na América ou já na Europa, talvez Espanha, se descoberto em La Masia ou Valdebebas. 

Mas não chega, repita-se. Há ainda qualquer coisa inexplicável numa das parcelas. Um defeito. Uma coisa de chico. Ser magro, pequeno e frágil, carregar sentença de crescimento difícil. Ou uma tendência para engordar, que desafia os músculos, o corpo bem definido, a capacidade atlética, e faz de âncora encalhada quando a bola pede o sprint como se não houvesse amanhã. Um génio tem de equilibrar a dúvida em cima de si e não deixar que esta se precipite com o todo o seu peso e o esmague. É a sua primeira prova de superação.

Depois, é esperar que faça sentido, que a 11,3 kJ mol−1 a prata se funda com essa fragilidade, e com o cheiro a terra pisada e a madeira apodrecida das traves. Com as latas pontapeadas e os postes em forma de calhau e de terminações imaginárias, com bolas com o couro à vista, em recortes hexagonais, e ar a tactear lá dentro à espera de um buraco para sair em liberdade.
 
- A propósito, quantos hexágonos há numa bola de futebol?

É preciso fundir ainda esse pó de prata com o suor de tardes longas a festejar golos e a fugir à frente das mães, com os rebentos mais novos ao colo, a anunciar em gritos esganiçados que chegou a hora da janta. E os putos do ranho no nariz e dos sapatos rotos a continuar a não querer saber. Dos recortes perdidos, da comida a arrefecer e do pai a bater com os talheres em fúria, e da lei de Euler. E dos 20 hexágonos, que ele que diz que há, mas que ninguém consegue mesmo contar. 

Em La Boca, primeiro. Nas ruas. Depois no rinque do José Paz. Gaitán teve de lutar com essa sentença de que era pequeno, magro, frágil de mais para ser craque. E a dúvida entranhou-se em tudo até pisar a Bombonera, até marcar os primeiros golos. Até festejarem com ele as primeiras vitórias. Antes, chorava quando perdia, mesmo que tivesse feito o hat-trick com que todos sonham. E prometia não voltar no dia seguinte, sentindo o peso de toda a injustiça do mundo. Ainda de ranho no nariz, ainda pequeno e frágil, com um programa individual de fortalecimento à espera e a promessa de que seria um dos melhores da bela Argentina, que Centenera cantou pela primeira vez.

Nico ainda joga assim. De ranho no nariz, vermelhão como chico rebelde. Aquele pé esquerdo a combater a gravidade em fintas, livres – será que esqueceremos alguma vez aquela panenkada de fora da área?  , cruzamentos ou bolas picadas sobre o guarda-redes. A jogar como se fosse o futsal dos velhos tempos mas sobre a cancha, esta com menos papelinhos no seu caminho. Cresceu e o seu futebol ficou ainda mais puro, natural, imprevisível. E sem a bola tornou-se adulto, preocupado com a sua baliza como um verdadeiro europeu. Esteve perdido, sim, algures, a certa altura, mas reencontrou-se ou reencontraram-no, fez-se homem e rejuvenesceu, por mais antagónico que isso possa parecer.
 
Nós, felizes da vida por termos à frente o melhor Gaitán de sempre. Este sim génio. E, agora que nos apercebemos de tudo isso, temos pouco para oferecer-lhe, para que fique connosco por mais um bocado. Para que beba mais um copo e nos conte mais uma história com outro golaço, já que achamos escasso o tempo que passou connosco a divertir-nos. Não chores mais, porque choraremos por ti, argentino!

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«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol. Pode segui-lo no    FACEBOOK e no    TWITTER. O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.