[Crónica originalmente publicada no dia 1 de abril, às 00:07]

- Isto está de chuva!
- E o futebol virado do avesso...
- Por que dizes isso?
- Então não é que o Mourinho perdeu com um dos últimos, lá em Inglaterra!
- Pois foi, está a perder qualidades.
- Desde o Inter que não é o mesmo.


Palavras duras, entre tremoços, amendoins, pires com círculos a vermelho e a cerveja que morre lentamente. Às vezes, há pica-pau. Caracóis. Num café qualquer, vazio depois da refeição ou a meio da hora de ponta. Uma conversa banal entre quaisquer idades. Putos ou velhos, os outros guardam-nas para o lanche ou o almoço, que é quando dizem que têm tempo. Folheia-se o jornal, sem grande atenção, fugindo à política e à economia, por causa da crise e da demagogia. Bem que podíamos ser russos, e em vez da troika tínhamos uma Perestroika, e o Passos Coelho um derrame diz-que-sexy na careca. Espera-se que nunca se lembrem de taxar o uso de bigode. Olha-se para a rua, contam-se carros a passar, e fazem-se apostas.

Nullius in verba. Não acreditem na palavra dada por ninguém. Ou melhor, não tomem nada por certo. Se Copérnico fosse vivo provavelmente estaria no sábado no Selhurst Park a fazer contas à vida e a inventar o novo paradigma: afinal, a Terra não gira à volta de Mourinho. Algo que todos já sabíamos, mas não ousávamos dizer alto, com medo da Inquisição. O Special Happy One já não pode chegar ao Céu, como na anedota, virar-se para o Criador e dizer irritado: «Estás sentado na minha cadeira!» O Mundo voltou a abalar, as placas tectónicas deslocaram-se, como se Artur tivesse voltado a enterrar a Excalibur nos flancos do Dragão, e deixado a terra órfã de um rei e de um destino, com os da Távola à procura do Santo Graal por todo o planeta.

Claro que Terry, este Terry, estraga qualquer equação, mesmo feita com boa vontade e algum conhecimento matemático, mas saber que o melhor treinador do mundo já perde com o Crystal Palace quando não pode mesmo perder é um soco no estômago, prolongado com um uppercut. Cair assim, quando a época já só tem sentido único rumo ao título, e estão citizens milionários e um Liverpool que-nunca-caminha-sozinho prontos para a ultrapassagem, é algo que não imaginávamos possível no currículo de Mourinho. Tivemos de esperar para ver e ver para crer. Chegámos a viver esse dia, de tão improvável que era.

Mou perdeu algumas batalhas na guerra declarada com os todos-bons-rapazes do Barça. Permitiu um contra-ataque num mental com Guardiola. O português fez xeque ao rei, o espanhol reagiu com um «falamos dentro de campo». A partir daí, talvez tenha sido a partir daí, a aura lascou. Fez um crack assustador, e o treinador português teve de continuar a tocar a bola para a frente, olhando de lado desconfiado, como se olha para um pára-brisas quebrado durante um dia de ventania e chuva torrencial.

Balls, escreveu. Pediu um bloco de notas para não ter de dizê-lo em voz alta e a Premiership inteira ouvir. Bolas, tomates pronto, no fundo, coragem. Escreveu-o depois de disparar em todas as frentes, como um adolescente entusiasmado com uma daquelas metralhadoras que atiram água, de brincadeira. O Barcelona, Benítez, o Real Madrid, Wenger, o Benfica, o FC Porto, Pellegrini... Não parou de falar desde que voltou à Bridge e agora, depois de uma derrota inacreditável, deixou expostos aqueles que tinha sempre deixado do lado de dentro da redoma. Falta-lhes «balls». Michael Thomas é que as tinha, e big! Se Souness o dizia... Já o Mourinho que se punha no caminho das balas por onde anda?

Isto do xadrez tem que se lhe diga. Mover uma peça na cabeça três jogadas antes de a mexer no tabuleiro é de dar em louco. Atacar, contra-atacar, para atacar de novo é deixar cair barris de água oxigenada, daquela com os graus todos – e que nunca sei quantos são –, em cima do cabelo. É perder o requinte, a classe e a noção dos limites. Mourinho esqueceu de propósito o especial do cognome, e confortável e happy entre os seus continuou a disparar, a tudo o que mexia. A molhar tudo e todos com a sua metralhadora de brinquedo, trazida de Madrid. Dez anos depois daquela famosa conferência de imprensa em que reclamou o adjectivo, o técnico tem de provar que ainda o é. Especial. Pode começar por Torres e fazer dele um avançado competente. Ou por outro qualquer. Nós todos acreditamos que sim. Que ainda é especial. Mas o Mundo não terá deixado já de girar à sua volta?

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«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol. Pode segui-lo no   FACEBOOK e no   TWITTER. O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.