Joaquim Meirim, falecido esta quarta-feira em Lisboa, era aquilo a que se costuma chamar um homem difícil. Teimoso, polémico, provocador, terá feito, com certeza, mais inimigos do que amigos no mundo do futebol. Nada que o preocupasse: astuto, implacável perante o que considerava serem traições, tinha na coerência e na fidelidade aos seus princípios as únicas referências para o seu caminho. E sabia, como poucos, que os amigos valem quase tudo, de preferência quando são poucos e seleccionados.  
 
Nascido a 5 de Outubro de 1935, iniciou a carreira de treinador muito novo, no Oriental, ainda antes de completar 30 anos. A estreia na I Divisão dá-se na CUF, em 1967/68. Com apenas 32 anos, cedo deu mostras de uma personalidade forte - ao fim de algumas semanas não hesitou em pôr de lado o defesa Mário João, histórico campeão europeu pelo Benfica, a quem criticava a falta de empenho. E nas primeiras entrevistas à imprensa desportiva castiga sem piedade a classe de treinadores, o que lhe vale as primeiras inimizades, que começa a coleccionar como medalhas.  
 
Treinar dois clubes em simultâneo  
 
A sua inteligência viva e o gosto pela provocação tornam-no cliente habitual das primeiras páginas: algumas das mais deliciosas manchetes desse tempo nascem de frases suas. O passo seguinte é o Varzim, na temporada de 1969/70. Consegue manter uma equipa sólida e competitiva que conquista por direito próprio um lugar tranquilo na I Divisão. Sempre capaz de surpreender, não chega ao fim da época sem tentar uma aventura insólita: aceita treinar ao mesmo tempo o Sp. Braga, que lutava para não descer. A uma jornada do fim, zanga-se com os dirigentes e abandona os minhotos à sua sorte. A descida à II Divisão dá-se no jogo seguinte ao seu abandono.  
 
Por essa altura, a sua reputação abre-lhe as portas do Belenenses, em 1970/71. Depois de uma pré-temporada recheada de peripécias e cobertura jornalística ¿ foi dos primeiros a utilizar a praia e o pinhal como palcos de preparação, obrigando os jogadores a um contacto forçado com a natureza, que muitas vezes se traduzia em banhos forçados ou em subidas às árvores ¿ joga mais uma cartada provocatória: anuncia que o campeão nacional está encontrado, mora no Restelo, e «as restantes equipas vão ter de discutir o segundo lugar».  
 
No Belenenses, «a melhor equipa portuguesa»  
 
Após um início favorável, a deslocação às Antas é o primeiro teste exigente. Meirim aquece o ambiente com uma tirada à Meirim: «Parabéns aos adeptos portistas, que vão ter o privilégio de ver a melhor equipa portuguesa». Com o passar do tempo, o entusiasmo esfria, o Belenenses perde brilho, o efeito Meirim atenua-se. Anos mais tarde, dirá com total desassombro que tudo não passou de estratégia para garantir casas cheias no Restelo até ao Natal. Para todos os efeitos, duas épocas mais tarde, já sem Meirim, o Belenenses é segundo classificado, com uma das melhores equipas da sua história ¿ e muitos jogadores lançados pelo ex-técnico.  
 
A sua carreira fixa-se a Norte. Varzim e Boavista são alguns dos postos por onde passa, antes de uma curta aventura em Moçambique. O 25 de Abril apanha-o no auge da combatividade. Coerente com as suas ideias, escolhe a ala esquerda e procura dinamizar a classe de treinadores. Mais uma provocação: enquanto treinador do Leixões, candidata-se à Camara de Matosinhos pela FEPU, coligação dominada pelo PCP. Os dirigentes do clube não gostam, fazem-lhe a vida num inferno. Arranja uma saída típica para o problema: antes de um treino, provoca de tal maneira um dirigente que este o agride à vista de toda a gente. A rescisão é calmanente negociada, a indemnização dá-lhe alguma tranquilidade.  
 
A eleição contra Pedroto  
 
Numa era politicamente extremada, a sua popularidade no meio do futebol cai a pique. A gota de água ocorre durante as eleições para a Associação de Treinadores, também em 1976: candidata-se contra a lista patrocinada por José Maria Pedroto, treinador do F.C. Porto e da Selecção Nacional. E ganha. A sua trajectória profissional nunca recuperaria desta vitória.  
 
Tempo para um breve piscar de olhos à história: em 1976/77 treina o Beira-Mar e acompanha a última época de Eusébio. Salgueiros e Boavista são outras etapas, com escalas em pontos diversos. A subida do E. Amadora à I Divisão, em 1987/88, é uma das derradeiras proezas desportivas no seu currículo. A capacidade para ser incómodo e coleccionar adversários (Pedroto terá sido o mais duradouro) acaba por ter mais força do que a competência.  
 
Meirim não se ilude, o futebol vai-lhe virando as costas. Depois de uma passagem por Louletano, Lusitano de Évora e Vianense, regressa ao Varzim, aparece nos ecráns da RTP como comentador e encerra a carreira no Desportivo de Beja, na II Divisão, em 1997. O último combate apanha-o já muito doente. Com a teimosia de sempre, envolve-se nas eleições para a Associação de Treinadores, no ano passado. Ainda e sempre a consciência de classe, a tentação de mudar as coisas. Perde. Impugna a eleição. Perde no tribunal. Recorre. Ganha o recurso. Nunca chegará a completar o processo, mas perde-se novamente no prazer do combate, especialmente os combates perdidos à partida.  
 
Como o combate que travou com a doença, afastando-o ainda mais de um meio que, à excepção de uns poucos amigos verdadeiros, já lhe virara as costas há muito. Sem títulos significativos a dourar-lhe o currículo, sem alguém capaz de contar melhor do que ele as milhares de histórias e anedotas vividas em mais de 30 anos de carreira, Meirim desaparece esta quarta-feira, correndo o risco de desaparecer também da memória dos adeptos portugueses sem deixar traços. Suprema injustiça para um homem de princípios, lutador e mestre na guerrilha psicológica do futebol português. Pioneiro por excelência, teve a ousadia de ser o primeiro estandarte anti-sistema, numa altura em que ainda nem havia sistema. 

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