Não é muito habitual começar a dissecar um golo pelo guarda-redes que o sofreu. Mas Peter Schmeichel também não era um guarda-redes habitual. A presença física, impressionante, traduzia-se num peso com três dígitos e em 1,93 metros que, lá dentro de campo, pareciam bem mais. E tinha, além disso, um temperamento que o transformava em centro das atenções, mesmo quando o jogo decorria bem longe da sua baliza.

Essa tendência para o protagonismo tinha ilustração prática na exuberância das suas lendárias broncas a colegas de equipa e adversários. E também na frequência com que subia à área adversária para tentar o golo em situações de bola parada. A ténue linha entre autoconfiança e arrogância esbatia-se por vezes, como no único golo que marcou pela seleção da Dinamarca, num particular com a Bélgica, em 2000. Tinha acabado de sofrer um golo de pénalti, que considerou injusto. Por isso, sete minutos mais tarde, quando a Dinamarca beneficiou de outro castigo máximo, não descansou enquanto não foi de uma área à outra, reclamando para si o direito a fazer justiça. Mas não o fez de qualquer forma: cobrou o castigo sem balanço, como quem sublinha a sua superioridade moral sobre tudo e todos.



O afilhado dos Diegos

Ora acontece que, na tarde de 16 de junho de 1996, o enorme ego de Peter Schmeichel não era o maior a pairar no relvado de Hillsborough. Do outro lado, como estrela de uma seleção croata acabada de chegar aos grandes palcos, apenas quatro anos depois da independência, havia um avançado igualmente temperamental e egocêntrico que tinha construído a carreira, pacientemente, para chegar àquele momento.

Ao longo de cinco anos, desde a implosão da Jugoslávia, Davor Suker tinha aperfeiçoado talentos de goleador e showman nos relvados da Liga espanhola, onde jogava pelo Sevilha. O difícil equilíbrio entre provocação e talento, cultivado com a ajuda de especialistas tão ilustres como os ex-colegas Diego Maradona ou Diego Simeone, tinha feito do mago de Osijek o avançado mais pretendido da Liga – e valera-lhe, às portas desse Euro-96, a transferência sonhada para o Real Madrid. Era, por isso, um Suker com um moral estratosférico o que se preparava para um duelo épico com o melhor guarda-redes da sua geração.

(O contexto importa. Neste caso, ainda mais. Vale a pena suspender o jogo, nessa tarde de junho, para lembrar que a coroa de glória de Peter Schmeichel, nessa altura, era o título de campeão europeu conseguido pela Dinamarca, em 1992. Um título que nunca teria ganho sem o eclodir da guerra na Jugoslávia, que deixou fora do Europeu uma fantástica seleção com Suker, Boban, Prosinecki e outros croatas. A repescagem da seleção dinamarquesa, que acabou por conquistar o troféu, foi o início de uma das grandes surpresas da história do futebol. Era inevitável, portanto, que os croatas, com Suker à cabeça, sentissem que o estatuto de campeão europeu em título lhes tinha sido de certa forma usurpado pelos dinamarqueses)



Dois miúdos no recreio

A Croácia tinha começado esse Europeu com uma vitória a ferros, diante da Turquia (1-0). Já a Dinamarca tinha conseguido um empate, feliz, perante uma forte seleção portuguesa (1-1). Em caso de vitória, os croatas garantiam de imediato o apuramento, deixando as esperanças dinamarquesas presas por um fio. E esse cenário tornou-se bem mais concreto aos 53 minutos, quando Schmeichel derrubou Stanic em plena área: chamado a converter o penálti, o pé esquerdo de Suker não tremeu e, rematando para o lado direito do guarda-redes, ganhou o primeiro duelo de egos com o grand danois.



Não seria esse a ficar para a história, porém. Todo o jogo de Sheffield, daí em diante, poderia ser resumido por medições de temperatura: enquanto o passar dos minutos vai acentuando o estado febril de Schmeichel, embalado pelo golo e pelos espaços que o desespero dinamarquês lhe vai abrindo Suker torna-se cada vez mais frio e cirúrgico, conduzindo o baile com toques subtis de pé esquerdo.

É essa frieza que, a nove minutos do fim, permite a Davor, o afilhado dos dois Diegos, servir Boban para uma finalização à queima-roupa diante de um Schmeichel cada vez mais furioso, consigo próprio, com os colegas e com a humanidade em geral.



Com dois golos para recuperar em tão pouco tempo, Schmeichel sabe que a Dinamarca está condenada. Mas não está no seu feitio render-se: o desespero fá-lo avançar no campo, cada vez mais, como quem tenta empurrar a equipa para a frente, uma última vez. É isso que está na origem do primeiro momento de magia desse cair de pano: apenas três minutos depois do golo de Boban, um alívio longo da defesa croata, em balão, faz a bola aterrar no peito do pé esquerdo de Suker.

A receção é tão boa e tão difícil que tem qualquer coisa de obsceno. Mas o que vem a seguir é ainda melhor: sem parar para pensar, Suker rodopia sobre si mesmo e, três metros para lá da linha de meio campo, tenta aproveitar o adiantamento de Schmeichel para lhe fazer um chapéu. A custo, o dinamarquês sprinta a toda a velocidade e faz valer o seu 1,93 para travar a bola mesmo em cima da linha de golo.



Por essa altura o jogo já acabou para toda a gente, menos para aqueles dois egos. Schmeichel não contém uma provocação de vencido: ergue o polegar na direção de Suker como quem lhe grita «és bom, mas não chegas para mim». Cada vez mais frio, o croata não reage ao gesto. Limita-se a fixar a baliza, com a certeza de que terá outra oportunidade para ganhar aquela discussão.

E é isso mesmo que acontece, no último minuto, quando Schmeichel se aventura até à área da Croácia, para um derradeiro canto. Ingenuamente, Brian Laudrup tenta marcá-lo à maneira curta, mas deixa-se apanhar em fora de jogo. E os 15 segundos que se seguem são pura lenda, ajudada pelo oportunismo do realizador, que apanha Schmeichel a iniciar o sprint de volta à baliza, de rosto vermelho, enquanto chama todos os nomes aos colegas de equipa.

É verdade que há um ligeiro fora de jogo de Suker no momento em que o passe de Jarni lhe chega à ponta esquerda. Façamos uma última pausa para admirar aquela receção inacreditável com o pé direito, que permite a Suker embalar para a baliza em velocidade de cruzeiro, sem perder um metro para os defesas. Depois, admiremos ainda a condução de bola com o pé direito, que lhe permite chegar à área no ângulo certo.

Certo para quê? Para aproveitar o recuo apressado de Schmeichel, que deixa um espaço demasiado grande nas costas, com a ânsia de encurtar ângulos. Um espaço demasiado grande, mesmo para o seu 1,93, que parece bem mais para um jogador normal. Claro: Suker não é um jogador normal. É um duplo Diego, Maradona e Simeone, génio e provocador, que ousa o gesto mais simples com a certeza de que aquele palco é seu.



O chapéu subtil, de pé esquerdo, encobre Schmeichel e entra lentamente na baliza. Naquela altura não há Croácia, nem Dinamarca, nem Euro 96, nem desfora de 1992. Há apenas dois egos à solta, como os de miúdos num recreio. Braços abertos, à altura do peito, Suker partilha a glória com a bancada. O seu futebol, nesses instantes, teve um século de sabedoria acumulada. O seu sorriso, esse, não terá mais de onze anos de idade. A combinação perfeita para um avançado.

Vale mesmo a pena ver os últimos dez minutos desse jogo na íntegra, por exemplo aqui

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