Admitamos. Aqui, o melhor do mundo é só um. É um barrilete cósmico, e Pelé e os seus mil golos um incomodativo ruído de fundo. Mil golos em forma de moscardos à volta da nossa cabeça. E se alguém insistir com a imagem do maior vendedor de Mastercards (e Viagra, a seu tempo) do planeta, temos um Eusébio como Ás de trunfo para nos ajudar a embirrar. Qualquer dia, será Cristiano a entrar na nossa mão. Com alguma sorte, venceremos todos os brasileiros, e ele mais que todos, pelo cansaço. 

Aqui, o melhor golo de todos os tempos deixou marcas de serpente na relva do Azteca e um rasto de peças de dominó derrubadas,
made in terra-de-Sua-Majestade. Não é cópia feita em reprografia de Getafe, acompanhada pelos sorrisos de Rijkaard, o encostar de testa com Deco e a demorada troca de palavras com Eto’o, cúmplices de outros tempos.

Reconheço que possa ser injusto. Logo agora, aparece uma crónica em forma de corvo e com grasnar irritante. Ou pior, abutre a fazer círculos de sombra à volta do animal ferido lá em baixo. A verdade é que os grandes só se conseguem criticar quando se mostram um pouco menores, quando nos mostram todos os seus defeitos. E o
puto argentino sempre foi demasiado perfeito. Tanto que poderia ser noivo de todas as jovens virgens (se ainda existirem, claro) da terra das Pampas ao Alasca, passando obviamente por Ermesinde, onde diz a lenda que são mais giras. Todos os quase-sogros tiveram durante anos um candidato a genro que jogava à bola e ganhava milhões.  Demasiado perfeito. Irritantemente perfeito.

Talvez o erro fosse tentarem decalcar Maradona do novo Messias argentino. Os defeitos não se conseguem copiar com rigor. São pessoais, individuais, nascem connosco, crescem no meio de nós, e a única coisa que podemos fazer é que não nos dominem. Se possível camuflamo-los algures no nosso ADN, mas muitas vezes manifestam-se bem mais vezes do que gostaríamos. E talvez isso se passe ainda mais com os génios. Os defeitos são o que os tornam ainda mais especiais, sobre-humanos. E onde estavam os de Messi?

Nunca Messi esteve tão longe do Pelusa como hoje e a soma de anos-luz que agora os separa, a única que consegue medir a distância entre astros, ajuda a que nos esqueçamos com facilidade de tudo o que já fez, de quantas vidas salvou, com os seus super-poderes. Temos de reconhecê-lo.

Mas as últimas imagens são demasiado fortes! Os vómitos. Sucessivos. Uma temporada como se um maçarico fosse ao volante, com arranques e paragens bruscas. Aquele golo incrível falhado perante Manu Herrera há duas jornadas. A incapacidade de se libertar de uma teia colchonera no jogo do título (que poderia ter sido tão injusto). Uma época inesquecível, para esquecer. 

Antes, em todos os momentos, Léo sempre esteve lá. Agora, é preciso que descubram o calhau de kryptonite verde-florescente que lhe amarraram ao pescoço. Será que as asas da Pulga não queimaram quando se começou a aproximar do sol?

Não será também um aviso para Ronaldo?

E ao mesmo tempo que um fenómeno se afundava outros se levantaram. Que lição de vida! Genial Simeone! Genial o Atlético! Por essa ordem. Tiago, aos 33 anos, a ser banhado a ouro. Merece tanto. Merecem-no tanto. Tanta justiça. E todos os outros a um nível a que nunca estiveram antes de Cholo chegar ao Calderón. Território inimigo, dois generais incapacitados durante uma batalha que começou por ser perdida. E que generais, logo os maiores, os mais respeitados…

Alguém deve ter-lhe falado do síndrome de Estocolmo, não acham?

Sim, Simeone deve ter-se lembrado. Ou tirado a lógica da coisa, que vale tanto como ter máximas para citar.

Adaptamo-nos ou morremos!

Como sempre, adaptou-se. E sobreviveu. A sobrevivência valeu um título, uma festa enorme. O David tinha derrubado dois Golias, cada um a seu tempo, cada um de forma diferente.

E Messi? O que está à sua frente é um caminho tortuoso. Vai ter de lutar contra a dúvida durante as próximas semanas. Contra si, contra o seu corpo. Na competição onde Maradona brilhou, num palco hostil, terá sobre os ombros todo um país. E o melhor que os argentinos podem pedir nesta altura é que Messi volte a ser Messi. E que deixe de tentar ser Maradona.

--
«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol, e é publicado de quinze em quinze dias. Pode segui-lo no   FACEBOOK e no   TWITTER. O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.