O pontapé-golo de Herrera podia acordar-nos. De sobressalto. Em suores frios. A maldizer o momento. Mas acordar-nos. Poderia acordá-los a eles também, e também eles teriam as nossas dúvidas, com a chegada dos primeiros pensamentos à velocidade da luz. Sentemo-nos. Mão à frente dos olhos para avistar mais longe, para lá da névoa, até ao fim do quarto. Espreitemos. Debaixo da cama, nos armários. Joelhos dobrados contra o peito, dedos sobre as têmporas

Que raio se passou?

Quantas vezes ficamos sem saber se é mesmo tudo verdade ou apenas parte de uma dor exasperante depois de um tackle deslizante do nosso cérebro? De quantos sonos despertamos sem ter a noção se a última coisa de que nos lembramos foi incluída no pacote que subscrevemos junto de Morfeu (o deus do sono, e não o eterno crente no Neo de Matrix) ou é mesmo o reflexo de um soco no estômago na nossa realidade? Não será muitas vezes, e não será muito o tempo em que permanecemos na dúvida, mas todos teremos tido um início de dia (pelo menos) em que o pesadelo foi demasiado real. Um sonho de uma realidade alternativa que não escolheríamos nunca.

Nesses momentos ficamos a pestanejar, à procura de uma inconsistência no código verde que corre à nossa frente como MS-DOS futurista. De um gato preto que se insinue. Da Carrie-Ann Moss a testar o bullet time, parando no ar antes de um pontapé no queixo do agente Smith.  Da escolha entre a pílula azul ou a vermelha. De qualquer coisa assim. 

E é então que o quarto se enche de luz. O entorpecimento dá lugar ao alívio. O alívio transforma-se em prazer. O acordar dá-nos outra oportunidade de fazer tudo do avesso, ou da mesma forma, mas mais depressa ou, pelo contrário, ainda mais devagar. Vencemo-nos a nós próprios, sentimo-nos privilegiados. Percebemos que Neo é um anagrama de One, o escolhido. Ganhamos o jogo de xadrez a uma das metades do nosso cérebro. Mas será que a outra nos deixará em paz?

Pior será se alguém nos forçar a dizer zugzwang entredentes, como se mordêssemos o comprimido errado. Não o vermelho nem o azul, mas o amargo. Cianeto. Uma palavra indizível, alemã de certeza, e somos obrigados a mexer uma peça sem a menor hipótese de vencer. Vamos ficar pior do que estamos, não podemos dizer

Passo, passo a vez!

Pressionados, temos de fazer o que não queremos. O relógio devora o tempo ali ao nosso lado, à espera que o atiremos para o outro lado do court. Até que alguém diga

Xeque.

Ou, pior

Xeque-mate!

Derrubemos o Rei. Desistindo. Aí o pesadelo é ainda pior. Tem o peso esmagador da realidade em cima de nós, e mesmo que fechemos os olhos para voltar a adormecer e tivermos dúvidas quando os voltarmos a abrir nada podemos fazer para a alterar.

Herrera, nem que sirva só de despertador, e não o voltemos a utilizar depois de o esmagarmos contra a parede. Esse golo do mexicano, de tirar o fôlego, no meio de nada e que não serviu para nada, que valha alguma coisa. Que seja o sublinhar do talento onde existe, que sirva para o regresso da auto-estima. Um esfregar de têmporas para reorganizar ideias, o levantar rápido e o voltar à vida, que corre lá fora.

O pesadelo é profundo, bem real

Já alguma vez sonharam estar a cair no vazio? Não é a pior sensação de sempre? 

e falta uma montanha de coisas. Parcelas de talento para somar, e que compensem as subtracções. Alguém que traga no currículo a capacidade para unir pontas soltas, ou fazer mantas de retalhos. Uma espinha dorsal. Referências. Símbolos de qualquer coisa. De qualidade, ou de garra, capacidade de superação. 

Em qualquer pesadelo que nos assusta saltamos disparados para a frente, em 90 graus, e agarramos a primeira coisa que virmos. À falta de melhor, que seja aquele golo de Herrera.

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«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião/crónica de Luís Mateus, sub-director do Maisfutebol. Pode segui-lo no  FACEBOOK e no  TWITTER. O autor usa a grafia pré-acordo ortográfico.