Os olhos brilham, os Oh! chegam em coro com dez vezes mais pontos de exclamação que antes. Os treinadores preparam a substituição, não interessa quem entre, para que os cachecóis girem, as buzinas ressonem e os adeptos saltem extasiados do banco para a ovação da noite. Teatralmente, aplaudem e gritam depois de tamanha representação. Bravo! Grande! Um golo assim é como a bicicleta de costelas partidas de Pelé naquele filme azarado por ter um Stallone a roubar protagonismo. De calcanhar é outra coisa, é especial! Mesmo que seja a única acção importante que se consiga na vida, em cima de um palco de relva.

Falcao, que sem til se torna de dicção e rima difícil, fez cerrar panos de memórias sobre o Dragão. À Madjer. Viste? Foi à Madjer! Um simples toque no couro criou uma ponte de 22 anos entre momentos de intensidade diferente, mas de elevado sentido artístico. O do mágico argelino valeu A Taça, aquele feito magnífico que se lembra sempre atrás de uma cerveja morna e um cinzeiro recheado de lembranças; o que fez o colombiano, ainda com mais engenho que o imitado, empurrou o F.C. Porto para um pouco mais perto dos «oitavos» da Champions. Apenas isso, com uma obra de arte.

Sim, Falcao foi giro e houve tantos mais. Houve um Zola voador com um inglês a despenhar-se à sua frente. Houve Ibra, de costas e em chapéu, ao melhor do mundo Buffon. Houve um Aimar carregado aos ombros pela selecção da Argentina, um Giggs imperturbável no United, um gunner Henry a desbravar caminho com um escopro improvisado na muralha de adversários. Houve Cruijff, Cristiano Ronaldo e Del Piero e este por muitas vezes. Houve Crespo, os dois Mancini, o velho e o brasileiro, e Van der Vaart.

Muitos ficaram mais gigantes, com o nome na camisola, quando o houve, reluzente como néon. Outros ganharam fama por um dia, correram mundo nos noticiários e talk shows sobre a jornada, e hoje vivem para sempre na internet. Não terá valido a pena?

O futebol mostra-nos todos os dias como se idolatra quem oferece ao jogo algo de diferente. Um pontapé de bicicleta no Burkina Faso, um golo de calcanhar na Mongólia podem ter direito de antena mesmo que pouco signifiquem. Por cá havia a «trivela» de Quaresma, a «letra» de Jardel, ainda há meses tivemos a «rabona» de Aimar. Momentos especiais, que os miúdos imitam e os velhos, porque já não o conseguem, atiram em diálogos de surdos depois da palmadinha nas costas. Agora, há o calcanhar de Falcao, assim mesmo, sem til, para que ninguém se atreva a fazer rimas. Daqui a semanas, meses, anos, a história acrescentar-lhe-á magia e um verbo: Lembras-te?

O homem é feito destes pequenos capítulos. A história é feita de muitas linhas, algumas sem particular significado. É feita de momentos. Simples e complicados. Bem sucedidos e nem por isso. É feita de dias banais e dias marcantes. Muitos provavelmente nunca pisarão o Prater de Viena ou estarão numa final da Liga dos Campeões, mas é verdade que se todos pudessem estar no sítio certo na altura certa o jogo não passaria de um longo engarrafamento. Não é melhor gozar o momento?

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, subdirector editorial do IOL, que escreve aqui todas as semanas. Siga-o no Twitter