As duas mãos na bola. Enquanto a levam devagar, pedem-lhe gentilmente que entre. Baixinho, para não ferir sentimentos. Para que não se vire contra eles. Colocam-na na relva. Suavemente. Há quem lhe dê um beijo prolongado, como se disso dependesse o sucesso, temendo que ao afastar os lábios cedo de mais também fique ofendida por achar merecer mais atenção. Mentalmente, repetem: Por todos os santos, entra! Um passo atrás como fazia Zico, três em corrida à Diego, corpo em 45 graus para os ângulos de Roberto Carlos. Entra! Por Deus!

O guarda-redes olha assustado. Sempre assustado. Vai de um poste ao outro. Um passo mais, grita. Assobia. Volta a gritar. Mais! Mexam-se. Mais um pouco. Grita só. Não se humilha a molhar o indicador para sentir a força do vento, não faz esquadro de polegar e indicador como realizador de cinema exigente, preocupado com os planos. Sente o coração a bater mais forte e a ameaça de meia parábola a sair do pé acarinhado do especialista. Berra como Bento, insulta como Schmeichel, sente-se seguro como Schumacher. Resiste a medir os batimentos no pulso ou sequer na jugular, respira fundo. O apito! Raios! É agora. Tu consegues. Tu con-se-gueeeees!

Platini faz a chamada com o pé esquerdo, dois passos depois. A bola sai como prolongamento do corpo de um saltador, o juiz, sentado ao pé da plasticina, levanta a bandeirinha branca. É válido. Dez metros, vinte, trinta. Adeptos dos anos 50, ainda a preto-e-branco no pequeno ecrã, põem as mãos na cabeça e fazem caras de parvo. Bola na gaveta! Oh my God! Nada a fazer. Michel corre, perseguido pela multidão de bleus.

O keeper olha para o fundo das redes, solta a bola presa na rede como pescador desiludido com peixe miúdo. Nada a fazer... O sol está a ferver. Sente-se mal. É de mim ou...? Maradona corre para a bola. Um passo. Dois. Três. Será visão dupla? A bola enrola, gira como meteorito desgovernado, antes de se abater sobre uma cidade inteira. Cospe fogo, destrói tudo à sua volta. A baliza aguenta, o guarda-redes não. O voo é uma frase com reticências. Nem serve de afirmação.

Um pesadelo! Roberto Carlos, Van Hooijdonk, Del Piero, Juninho Pernambucano, Zola (irrepetível o truque de magia perante o Tottenham em 2002, tão grande que quase não cabe neste parêntesis), Rivaldo, Hagi, Mihajlovic, Ronaldinho, Pirlo e Zidane. Walter Zenga quase chora com um livre do Pelusa e até que nem acho mal. Van Breukelen desespera com a folha-seca de Le Roi. James põe as mãos na cintura, só pode estar conformado por não ter sido frango. Cristiano Ronaldo grita histérico, com as mãos abertas para o ar. Todos se irritam com um dos muitos Pelés brancos, com aquele passo e golo. Zico, passo e golo. Passo e golo. Passo e golo. Enerva, não é?

Nós, infelizes, ficamos com Bruno Alves. Não por ser Bruno Alves, mas porque sim. Dois golos, memoráveis claro, mas dois golos. Dois grandes livres, mas dois. Com muito jeito, sim, mas são dois. Uma época inteira e um especialista com dois remates que deram golo. Viva o luxo! Balakov, Valdo, Branco, Geraldão, Simão, lembram-se? Imitem-nos, treinem, que raio! Com classe, usem pesos nos pés, vejam o youtube e o DVD, procurem inspiração nos textos cinematográficos de Valdano. Há poucas coisas mais poéticas que um livre ao ângulo. Mas os futebolistas de cá também parecem gostar pouco de ler.

«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, subdirector editorial do IOL, que escreve aqui todas as semanas. Siga-o no Twitter
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