A 3 de junho de 1997, no estádio Gerland, em Lyon, Roberto Carlos adaptou as leis da física ao seu pé esquerdo e marcou um daqueles golos que explicam por que razão se anda há 140 anos a falar destas coisas. Mas não se deixem ir na simulação: não é esse golo que vamos dissecar, por esta vez. Primeiro, porque seria leviano tentar dizer algo diferente sobre isto sem uma pós-gradução em balística forense. E segundo, porque, por improvável que pareça, o mais interessante no pé-canhão de Roberto Carlos é que não nasceu de geração espontânea – é, sim, o descendente mais mediático de uma ilustre linhagem de laterais ofensivos – esquerdos ou direitos, tanto faz - que vestiram a camisola amarela nas últimas décadas.


Roberto Carlos à França: este fica para outra vez

Não é preciso uma busca exaustiva: só entre golos de laterais em Campeonatos do Mundo, a galeria, fundada por Nilton Santos em 1958, inclui obras de arte assinadas por Carlos Alberto (1970), Júnior (1982), Josimar em dose dupla(1986), Branco (1994), pelo próprio Roberto Carlos (2002) ou ainda por Gilberto (2006) e Maicon (2010).
Mas, depois, esta história chega a junho de 1978, e torna-se obrigatório escrever um capítulo à parte, dedicado a Manoel Resende de Matos Cabral, que o mundo do futebol ficou a conhecer como Nelinho.

Do Barreiro a Buenos Aires

Recomendado por Otto Glória, o lateral carioca passou pelo Barreirense com apenas 20 anos, na época 1970/71, sem brilho nem glória.


Nelinho ao centro, entre Câmpora e José Carlos

Fez meia dúzia de jogos numa equipa que penava para não descer de divisão. Lesionado e desiludido, voltou para o Brasil em fevereiro de 1971, a tempo do Carnaval e de reinventar uma carreira de alto nível, quando se mudou para o Cruzeiro de Belo Horizonte, em 1973. Foi aí que a potência do seu tiro de pé direito lhe valeu uma dupla alcunha: Nelinho Pé de Chumbo ou o Canhão da Toca, em referência ao centro de treinos do clube, a Toca da Raposa. Estas imagens ajudam a perceber os motivos:



Integrando uma das melhores equipas da história do clube, o sucesso – traduzido em quatro títulos estaduais e uma Taça Libertadores, em 1976 – valeu-lhe a titularidade na seleção brasileira ao longo de cinco anos, com passagens por dois Mundiais. E se, em 1974, tapado por um Rivelino implacável na cobrança de livres, Nelinho não teve ocasião para mostrar ao Mundo o tal Pé de Chumbo, quatro anos mais tarde, com Rivelino relegado para o banco de suplentes por Cláudio Coutinho, outro canhão troaria nos relvados da Argentina.

Uma trivela com esteróides

Depois de um primeiro golo nesse Mundial, à Polónia, que já chegaria para justificar a fama, a obra de arte de Nelinho chegou a 24 de junho de 1978, no jogo de atribuição dos terceiro e quarto lugares, em Buenos Aires. O Brasil perdia (0-1) com a Itália e Rivelino aquecia na lateral, pronto para entrar. Aos 64 minutos, o mítico Roberto Dinamite, ponta de lança dessa seleção, veio recolher um passe de Cerezo, fora da área. Com três opções para a tabela, mas ainda mais camisolas azuis no caminho, viu Nelinho que acelerava na direita. Roberto decidiu-se por solicitar o lateral, correndo de imediato para a área, antecipando um bom cruzamento ao segundo poste.

Não foi o único a pensar assim, enquanto Nelinho recebia a bola com um toque que a levava um pouco para lá da quina da área: o guarda-redes italiano, Dino Zoff, recorreu à calculadora mental para antecipar a trajetória do cruzamento, riscando a opção remate das possibilidades, como o faria qualquer guarda-redes que não estivesse familiarizado com o Canhão da Toca.

Anos mais tarde, Nelinho viria a dissecar o momento mágico, numa reportagem para a SportTV do Brasil: «Quando dominei aquela bola, vem-me à cabeça o seguinte: pela posição em que estou ele vai achar que eu vou cruzar. Por isso vou bater pro gol, vou dar a curva ao contrário. Não foi coincidência, não foi sorte, não foi nada. Foi puro treino que coloquei em prática, naquele momento. Já tinha feito muitos golos assim, que a TV não gravou e o Mundo não viu» contou.


Já foste, Dino…

Quem ainda não conhece a peça, que espere mais um pouco sem clicar no link lá de baixo. Porque a trajetória de banana do remate, dado com a parte de fora do pé direito, no que apetece descrever como uma trivela que andasse a abusar dos esteróides, é tão incrível que justifica o recurso à física para desmontar o impossível.

Foi o que tentou fazer a SportTV. Usando a tecnologia, explicou que a bola saiu a 115 kms/hora do pé direito do Canhão da Toca. Que demorou 1,4 segundos a percorrer os 40 metros que a separavam do poste direito da baliza italiana. E que foi a rotação, duas vezes sobre o próprio eixo, que a fez efetuar uma mudança de rota em arco, que lhe permitiu anular um desvio inicial de 10 metros para contornar Zoff e anichar-se no ponto mais inacessível para o guarda-redes.



Tudo explicado? Decidam por vocês mesmos. Por mim, troco todas as explicações acerca disto por um botão de repeat. E repeat. E repeat.