O 10 sempre foi mais do que um número, um dorsal, mais até do que uma posição em campo. O 10 era o craque, o líder incontornável do ataque. Criador e, muitas vezes, também finalizador. No passado, muitas vezes o 10 era o 10, outras camuflava-se noutros números. «Os 10 e os deuses» recupera semanalmente a história destes grandes jogadores do futebol mundial. Porque não queremos que desapareçam de vez. 

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Cruijff é o 14, não o 10, mas também ele é maior do que qualquer número. Playmaker, finalizador, extremo muitas e variadas vezes e ao longo do mesmo encontro, o holandês revolucionário é o futebolista-total, o mais completo, do totaalvoetbal. É o centro de tudo, e reduz Rinus Michels apenas a co-autor.

Sempre a pensar diferente, um passo à frente dos outros, resume grande parte do seu futebol àquela frase

«Jogar futebol é a coisa mais simples que existe, mas jogar futebol simples já é a mais difícil.»

Toma sempre a melhor decisão, que é também por isso a mais fácil. Simples é também a sua finta de assinatura, a Cruijff-turn, mas tremendamente eficaz.

Nascido e criado em Amesterdão, ali ao lado do estádio, cedo chega ao Ajax. O pai merceeiro, é fornecedor do clube, e ele começa a estar ali ao lado dos ajacied durante os treinos antes de ir para a escola. Quando chega a sua vez de carregar a bola com os pés, fá-lo já como ideólogo, um miúdo que aponta para todas as direções, mostrando o caminho aos mais velhos, e quase sempre a reclamar razão.

«Era um jogo de passes rápidos ao primeiro toque, com os jogadores em trocas constantes de posição à procura de espaço. Cada jogador tinha de pensar como um playmaker. Até o guarda-redes era visto como o homem que começava os ataques, um líbero que, por acaso, usava luvas. Os extremos e os laterais em overlapping davam largura. Cruijff podia ir para onde quisesse, conduzindo a orquestra numa constante improvisação» (Sjaak Swart, antigo extremo holandês, que rejeitava a expressão «Futebol Total».)

As corridas ganha-as com a cabeça

O nosso Dez-feito-14 chuta com os quatro pés, dizem. Sim, quatro. Ninguém nesses tempos usa o exterior, a trivela, excepto ele, ambidestro e com esse recurso que o marca definitivamente. Também asseguram que, quando precisa, liga uma espécie de turbo, uma aceleração dentro da própria aceleração, que lhe permite que serpenteie sem esforço pelo meio de defesas inteiras. No entanto, diz ele que a velocidade é determinada sim pelo momento em que se decide começar a correr. É aí que faz a diferença. Ganha-se uma corrida com a cabeça e não com as pernas.

A lenda conta que num jogo com um adversário amador, não documentado em imagens, dirige-se para a baliza e é confrontado pelo guarda-redes. Ao reparar que este sai ao seu encontro volta para trás e começa a dirigir-se para as suas redes. O guarda-redes segue-o até perto do meio-campo, mas a certa altura apercebe-se que já não vê a bola. Cruijff rematara metros atrás, de calcanhar, sem perder o passo ou a compostura, e a bola entrara na baliza.

A responsabilidade que Michels lhe coloca sobre os ombros, mesmo com a constante contestação da autoridade e que leva o treinador a contratar dois psicólogos para o decifrar, fez dele o líder de todo um movimento, uma filosofia. Cruijff aceita-a, e o Ajax conquista três Taças dos Campeões Europeus seguidas. Depois da sua saída, que terá envolvido a perda da braçadeira e o muito dinheiro colocado em cima da mesa pelo Barcelona, o emblema de Amesterdão implode pela primeira vez.

A Laranja Mecânica, em 1974, nasce muito da sua cabeça. É ele quem explica a Arie Haan que deve jogar como líbero. É Cruijff quem muitas vezes grita para o banco para que Johnny Rep comece a aquecer. É o avançado-centro da equipa, mas está por todo o lado. Cruijff é o futebol-total e o futebol-total é Cruijff, e não existe sem ele.

Na véspera da final, o Bild escreve «Cruijff, Champagne e Mulheres Nuas» em letras garrafais, e Johann passa a noite a explicar a notícia por telefone à mulher. Ele, que não é um playboy como o irlandês George Best, sente toda a pressão da final, com Berti Vogts a ganhar todos os duelos excepto o primeiro nesse Mundial conquistado de forma surpreendente pela Mannschaft.

Dois títulos mundiais que morrem... numa piscina

Depois de quatro épocas sem grande sucesso na Catalunha decide retirar-se. Não vai à Argentina, ainda perseguido pelo incidente da piscina de quatro anos antes, embora tenham atribuído a recusa à ideia não querer jogar num país debaixo de um regime militar. A lógica, uma palavra tão repetida pelo nosso 14, mostra-nos, contudo, que uma só notícia poderá ter destruído as aspirações laranjas a dois títulos mundiais.

Falido por um péssimo investimento numa fazenda de criação de porcos, e depois de se ter despedido em 1978 num Ajax-Bayern, regressa ao futebol nos Estados Unidos, primeiro pelos LA Aztecs e depois pelos Washington Diplomats. Volta a divertir-se, recupera o gozo do jogo, mas também volta a ser Cruijff: após uma palestra do treinador Gordon Bradley, que tinha saído dos vestiários, apaga o quadro de giz e diz: «É óbvio que vamos fazer completamente diferente...»

Em 1981, volta ao Ajax, com 34 anos. Já não é o jogador dos dribles, dos passes de trivela a 30 metros ou dos penáltis e dois tempos (a meias com Olson). Ainda é, no entanto, o playmaker refinado, inteligentíssimo, que tinha opinião sobre tudo, inclusive o local onde estavam colocadas as luzes de Amesterdão. Ganha dois títulos pelos ajacied, muda-se para o Feyenoord porque não lhe pagam o quer e em Roterdão festeja-se no final o campeonato.

O maior ideólogo do jogo

Os tempos de Cruijff como treinador duram nove anos. Nos primeiros meses, trata de devolver um estilo holandês ao futebol do seu país, através do Ajax. Introduz novos métodos, novas ideias, reformula a formação. Todas as equipas passam a jogar dentro do mesmo sistema. Em 1987, os de Amesterdão vencem a Taça dos Clubes Vencedores das Taças, e um ano depois a Holanda vence o Europeu, novamente com Michels, mas também com uma equipa que Cruijff ajuda a consolidar.

Sai em 1987 devido a desentendimentos com a direcção, segue-se o Barcelona, e forma o Dream Team, depois de reinventar, tal como em Amesterdão, toda a formação culé. Quatro ligas seguidas, e a Taça dos Campeões de 1992 dão-lhe razão.

O feitio faz com que saia do Barça, e num terceiro regresso, agora como consultor, ao Ajax despede Louis van Gaal, que tinha sido contratado sem o seu aval, e orienta nova revolução, fazendo com que antigos jogadores assumam funções no clube, como treinadores da formação e dirigentes. O Ajax finalista da Liga Europa deste ano é ainda parte da sua obra.

Tal como tudo em que Pep Guardiola irá tocar, direta ou indiretamente.

«My story»

«Football's Greatest - Johan Cruijff»

Hendrik Johannes Cruijff
25 de abril de 1947

1964-1973, Ajax, 240 jogos, 190 golos
1973-1978, Barcelona, 143 jogos, 48 golos
1979, Los Angeles Aztecs, 23 jogos, 13 golos
1980-1981, Washington Diplomats, 30 jogos, 12 golos
1981, Levante, 10 jogos, 2 golos
1981-83; Ajax, 36 jogos, 14 golos
1983-84, Feyenoord, 33 jogos, 11 golos

Holanda, 1966-77; 48 jogos, 33 golos

3 Taças dos Clubes Campeões Europeus (Ajax, 1970-71, 1971-72, 1972-73)
1 Supertaça Europeia (Ajax, 1972)
1 Taça Intercontinental (Ajax, 1972)
10 campeonatos holandeses (Ajax, 1965-66, 1966-67, 1967-68, 1969-70, 1971-72, 1972-73, 1981-82, 1982-83; Feyenoord, 1983-84)
6 taças da Holanda (Ajax,1966-67, 1969-70, 1970-71, 1971-72, 1982-83; Feyenoord, 1983-84)
1 campeonato espanhol (Barcelona, 1973-74)
1 taça de Espanha (Barcelona, 1977-78)

Alguns prémios individuais:

Futebolista holandês do ano (1968, 1972 e 1984)
Bola de Ouro «France Football» (1971, 1973 e 1974)
Desportista holandês do ano (1973 e 1974)
Melhor jogador do Mundial 1974
Equipa ideal do Mundial 1974
Prémio «Don Balón» (1977 e 1978)
NASL MVP (1979)
Equipa-ideal do Século XX
FIFA 100
Equipa ideal de todos os Mundiais (1994 e 2002)
Melhor 11 de todos os tempos «World Soccer» (2013)
Terceiro melhor jogador do Século XX «World Soccer»
3º melhor Jogador do Século XX «France Football»
12º jogador europeu do século IFFHS
2º melhor Jogador do Século XX IFFHS

OUTROS 10

Primeira série:

Nº 1: Enzo Francescoli
Nº 2: Dejan Savicevic
Nº 3: Michael Laudrup
Nº 4: Juan Román Riquelme
Nº 5: Zico
Nº 6: Roberto Baggio
Nº 7: Zinedine Zidane
Nº 8: Rui Costa
Nº 9: Gheorghe Hagi
Nº 10: Diego Maradona

Segunda série:

Nº 11: Ronaldinho Gaúcho
Nº 12: Dennis Bergkamp 
Nº 13: Rivaldo
Nº 14: Deco
Nº 15: Krasimir Balakov
Nº 16: Roberto Rivelino
Nº 17: Carlos Valderrama
Nº 18: Paulo Futre
Nº 19: Dragan Stojkovic
Nº 20: Pelé

Terceira série:

Nº 21: Bernd Schuster
Nº 22: Nándor Hidegkuti
Nº 23: Alessandro Del Piero
Nº 24: Gianfranco Zola
Nº 25: Kaká
Nº 26: Lothar Matthäus
Nº 27: Teófilo Cubillas
Nº 28: Michel Platini