Pesada. Desgovernada. Um meteoro com direito a assobio e rufar de tambores. Vestiram aquele miúdo com fato de velho. Vincos nas calças, sapatos de verniz, gravata castradora. Não consegue estar quieto, mexe-se como se bichos-carpinteiros o empurrassem para a frente, o deixassem perante uma plateia cheia de pais e profs. É só dizer uma frase. A frase. Se te esqueceres o ponto ajuda. Aí vem!

Cada vez mais pesada com a aceleração da descida. Já oval, não redonda, num desenho animado com rastro de fogo. Jogadores com cabelo à Son Goku jogam futebol-shaolin e voam camisolas berrantes com grandes patrocinadores por todo o lado. O árbitro pergunta a um ninguém-san o quanto lhe dói. É preciso maca? E o técnico salta como mola do banco, a bola ameaça desperdiçar-se no tartan. De língua mordida no canto da boca, «Piksi» dá-lhe com o peito do pé. Sem que toque no chão, devolve-a.

Dezanove anos antes, o mesmo Piksi está sentado no banco do San Nicola, quando Goethals vê em si, a oito minutos dos 120, trunfo para os penalties. Claro que o belga com ar de Inspector Columbo tem razão, Stojkovic é O especialista, assim mesmo em capitais. Mas há um senão do tamanho da Sérvia. Do outro lado está o Crvena Zvezda, é assim que o lê - Estrela Vermelha para nós -, e quatro anos de memórias pintadas a vermelho e branco. Ne! Não! Dragan recusa derrotar a antiga equipa na final dos Campeões. Ne! O Marselha de Boli, Pelé, Mozer, Papin e Waddle leva soco para knockout no estômago. A criança reguila, ainda com a fisga a espreitar do bolso dos calções, é castigada. Um ano virado para a parede, no mesmo país, a 800 quilómetros de Bari. Em Verona. Com orelhas de burro na cabeça...

Que seria de Maradona se o tivessem obrigado a ser adulto antes de tempo? Aquele slalom gigante, com ingleses a voar como exércitos de cartas de Alice no País das Maravilhas, teria existido? Aquele Pelusa de Los Cebollitas a dar toques a preto-e-branco no início da sua própria história não é o mesmo que ganha a Shilton com armas que não suas e desata a correr como se tivesse tocado a todas as campainhas da rua? Parece.

O árbitro apercebe-se da ovação. Olha à volta. Vê Piksi, esse 10 com alcunha de pássaro pré-histórico encarcerado em fato de gala, de braços no ar, a sorrir e a agradecer. A obra de arte passara-lhe por cima, sem que a visse, e caíra na baliza antes da explosão das bancadas. Nesse Japão do Manga, enquanto Piccolo, Tenshin Han e Mestre Kame se apercebem do que está para acontecer e voltam relutantes aos tronos imaginários atrás do anfiteatro, corre para Stojkovic e expulsa-o. Já para a bancada! E ficas sem ver televisão por uma semana! Nem aqui!

Eles foram maus jogadores. Será que percebem mesmo alguma coisa de futebol? Eles que vêem tudo de tão perto, cada passe de mágica, cada drible... Eles que estão sentados na primeira fila são os desmancha-prazeres. Árbitros, por vezes também treinadores. A uma criança não se deve pedir que envelheça ou a história torna-se uma linha recta aborrecida.



«Era capaz de viver na Bombonera» é um espaço de opinião de Luís Mateus, subdirector editorial do IOL, que escreve aqui todas as semanas. Siga-o no Twitter
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