DESTINO 80's é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias dessa década marcante do futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis . DESTINO: 80's.

JORGE ANDRADE: Farense (1985 a 1987), Boavista (1987 a 1991), FC Porto (1991/92), Marítimo (1992 a 1995), V. Setúbal (1995) e Paços de Ferreira (1995/96)

Juntar Jorge Andrade e FC Porto na mesma frase levará, certamente, nove em cada dez seguidores do futebol a pensar no internacional português que comandou a defesa portista no início do novo século. Mas a verdade é que, uma década antes, já o nome bem português, mas com sotaque brasileiro, integrava os quadros portistas, numa experiência curta e que nada teve a ver com a restante passagem por Portugal.

Jorge Andrade, o brasileiro, destacou-se no Farense, integrou uma das melhores equipas do Boavista e ainda mostrou qualidades no Marítimo. Só falhou no FC Porto e, garante, nem sabe bem explicar porquê.

Ao todo foram mais de dez anos em Portugal, uma experiência que lhe marcou a carreira e a vida. Mas que começou da pior maneira possível. Nesta entrevista, conta que veio…enganado. «Entrei numa barca, bem…», desabafa.

«Jogava no Cabofriense e fui contactado por um empresário que me disse que tinha uma proposta para eu ir jogar para o Portimonense, equipa que ia disputar as provas da UEFA. Era a oportunidade da minha vida, fiquei muito entusiasmado. Mas eu estava bem no meu clube e disse logo que não ia para fazer testes. Ele garantiu-me que estava tudo acertado, era só viajar», conta. Faz depois uma ligeira pausa, desata a rir e atira: «Tudo mentira!».

Jorge Andrade percebe que tinha sido enganado quando, depois de chegar a Portugal, o encaminham para…o Farense. Estávamos em 1985 e o clube de Faro estava na II Liga. Que tombo!

«Quando me vieram com o Farense fiquei em choque. Cheguei a dizer que não ia treinar. Estava com um colega, o Paulo Sérgio, e acabei por pensar: ‘olha, já que estou cá agora vou treinar’. O Paulo não ficou, foi para outra equipa e eu fiquei no Farense», explica.

Um golo nas Antas ao serviço do Farense:

Foram duas épocas no Algarve, com uma subida de Divisão pelo meio. O país futebolístico ficou a conhecer o seu futebol. O Boavista ficou convencido e avançou para a sua contratação.

«O primeiro ano foi horrível. Foi lesão atrás de lesão. Estava muito triste», recorda. Valeu-lhe Valentim Loureiro: «O Major bancou tudo! Quando foi para o Nacional, o Paulo Autuori queria que eu fosse também, falei ao Major mas ele disse-me: ‘você não vai a lado nenhum’. Sempre gostei do Major. Sempre me tratou muito bem, não tenho nada a apontar-lhe.»

Os números de Jorge Andrade em Portugal

1985/86- Farense (II Liga)

1986/87- Farense (28 jogos/15 golos)

1987/88- Boavista (14 jogos/3 golos)

1988/89- Boavista (29 jogos/11 golos)

1989/90- Boavista (35 jogos/11 golos)

1990/91- Boavista (25 jogos/13 golos)

1991/92- FC Porto (12 jogos/2 golos)

1992/93- Marítimo (32 jogos/11 golos)

1993/94- Marítimo (29 jogos 11 golos)

1994/95- Marítimo (7 jogos/1 golo) e V. Setúbal (7 jogos/1 golo)

1995/96- Paços de Ferreira (II Liga)

Pepe a contar histórias de Pelé ao plantel axadrezado

Nesse primeiro ano no Bessa, em que apenas realizou 14 encontros, conheceu Pepe, que era o treinador. Figura respeitada do Brasil ou não tivesse integrado as seleções que venceram os Mundiais de 1958 e 1962.

«Ele era um personagem…(risos). Nunca demonstrava stress, só passava bom astral para malta», recorda Jorge Andrade.

«Contava muitas histórias do Brasil do Pelé. Todos os dias vinha uma história nova, os jogadores paravam todos para ouvir ele a contar aquilo. Lembro-me de uma vez ele contar que o Pelé dormia antes dos jogos. Entrava no balneário, deitava-se numa maca e dormia. Depois o pessoal falava: ‘Não acorda o negão. Quando chegar a hora ele lá dentro resolve’»

Jorge Andrade no Boavista

«João [Alves] não! Mister! Mister!»

Pepe saiu quando as coisas começavam a correr melhor a Jorge Andrade no Bessa. Passou pelas mãos de Raul Águas, «um dos melhores» que apanhou na carreira. Mais tarde encontrou João Alves. E veio o primeiro atrito conhecido. «Mas que fique bem claro que eu não tive nada a ver com a saída dele do Boavista. Ele é que se atropelou», comenta.

Jorge Andrade passa, então, a recordar o «rol de coisas estranhas» que complicaram uma relação que, julgava, até era de amizade e que, agora, diz estar restabelecida apesar da distância. «Falamos mais tarde e acho que ficou tudo resolvido», diz.

Mas vamos então às histórias. Primeira: «Ora bem, eu jogava de luvas pretas porque tinha frio, sou brasileiro não estava habituado ao clima. Dizia-se que eu queria imitar o João Alves, mas não. Ele não entendia isso.»

Para quem não sabe, João Alves era conhecido, precisamente por ‘Luvas Pretas’, tal como o avô Carlos Alves, uma das primeiras grandes figuras do futebol português. «Eu não queria imitá-lo, nem provocá-lo. Eu tinha era frio!», garante.

Antes disso até, Jorge Andrade recorda que costumava ter, inclusive, um bom relacionamento com João Alves. «Antes de ele ser treinador do Boavista ele já andava muito por lá, conversávamos muito. Parávamos muitas vezes num shopping lá na zona. Eu achava que éramos amigos, mas tinha um colega que me dizia: ‘Jorge, põe-te a pau com o João que ele não é teu amigo’. Eu não ligava, pensava que era ele a fazer intrigas», afirma.

Mas depois as coisas azedaram quando Alves assumiu o comando técnico do Boavista. E nem foi preciso esperar muito. Foi logo ao primeiro contacto…

«Quando ele assumiu o Boavista, no dia em que tinha de me apresentar faltei porque o meu voo foi cancelado. Liguei a avisar para o Boavista e não houve problema algum. Apresentei-me no dia seguinte e fui logo falar com ele. Estava o grupo reunido e à frente de toda a gente cheguei-me à frente para explicar e disse: ‘João…’. Ele interrompeu-me logo: ‘João não. João é para os amigos. Eu sou o mister!’. Isto à frente de toda a gente. Que vergonha. Comecei bem, não?»

«No FC Porto o treinador era o Carlos Alberto Silva mas mandava o Octávio»

Em 1991 abre-se, então, a janela do FC Porto. «O Pinto da Costa e o Reinaldo Teles entraram em contacto comigo e marcaram um encontro num hotel no Porto. Falei com Ronaldo Nunes, o meu empresário, e ele disse que tínhamos de ser duros a negociar, para tentar um bom contrato e para saber se era bluff ou se estavam mesmo interessados. Quando chegamos, o Ronaldo Nunes atirou um valor alto. Não me lembro qual foi a quantia. Era para iniciar conversa. Mas o Pinto da Costa disse logo: ‘ok, vamos a isso’. Nunca tinha visto uma coisa assim. Foi a negociação mais fácil da minha carreira», atira, entre risos.

O pior veio depois. «O FC Porto foi uma deceção danada. Fiz talvez uns 7 ou 8 jogos [ndr. Foram 12] e poucos como titular. Foi uma experiência muito estranha. Foi a maior deceção da minha carreira», lamenta. A concorrência era forte por um lugar no ataque, onde havia a dupla Domingos-Kostadinov e Mihtarski como restante alternativa.

A concorrência não explicou tudo e tentamos, então, entender os motivos. Questionámos: «O treinador era o Carlos Alberto Silva, não é?». Jorge Andrade responde de pronto: «Era, mas quem mandava era o Octávio Machado». Depois tosse e ri, como quem acaba de cometer uma inconfidência...

Jorge Andrade no FC Porto

O tom bem-disposto marca a conversa mesmo quando fala da fase mais complicada na carreira. «No FC Porto até comprimidos para dormir tinha de tomar. Não andava bem. Lembro-me que fui titular contra o Benfica e era uma pressão danada. É que quando jogava de início eu já sabia que ia ser o primeiro a sair! Era incrível. E se estivesse a correr mal era logo no intervalo. A minha autoestima estava no zero», frisa.

«Um dia o Carlos [Alberto Silva] chamou-me e disse-me: ‘Jorge eu gosto da forma como jogas mas não me posso meter nesse teu conflito com o Octávio. Isso é entre vocês’. Eu só lhe disse: ‘Mas que conflito? Onde foram buscar essa ideia? Eu sou jogador, ele é treinador, eu cumpro o que me mandam fazer’», garante.

E dá um exemplo: «Eu nunca fui um craque, mas sempre dei tudo o que tinha. Fui disciplinado e bom profissional. E no FC Porto, então, nunca chegava atrasado ao treino porque sabia que o Octávio estava sempre em cima de mim. Houve um dia em que cheguei um ou dois minutos atrasado, uma coisa normal que acontecia com vários jogadores. Mas ainda ia a correr para me juntar aos restantes e ele [Octávio] já vem ter comigo e manda-me para casa. Os outros podiam, eu não. Enfim. Foi a relação mais complicada que tive na minha carreira.»

Aquela foi a última época de Octávio Machado no FC Porto, curiosamente, antes de voltar, dez anos mais tarde, como treinador principal. E se a relação foi estranha, a despedida bateu tudo, conta Jorge Andrade: «Quando soube que ia embora do FC Porto, o Octávio veio ter comigo e deu-me um abraço assim do nada. Disse-me: ‘Você mostrou que é um grande profissional’. E seguiu à vida dele. Coisa estranha não?»

Jorge Andrade ficou mais uns tempos. «Mas estava morto por ir embora dali. Aquele ano acabou comigo, não foi nada fácil reconstruir a partir dali», garante.

E, para encerrar o capítulo FC Porto, deixa um sublinhado importante: «O problema nunca foi o clube. Sempre me deu todas as condições, tratava-me como um jogador mais. Com os jogadores tinha uma boa relação, nunca houve problemas. O Pinto da Costa não falava muito com os jogadores, era reservado. O Reinado Teles fazia essa ligação e sempre foi bom comigo. O problema foi o Octávio. O que retiro de bom é que consegui ser campeão nacional. E fiz um golo ao V. Guimarães», relembra.

Vitória que era treinador por…João Alves.

O golo ao V. Guimarães (com direito a dança) aos 2m10s:

Tapetes para Bertollazzi e um urologista para Heitor

Depois do FC Porto, Jorge Andrade representou o Marítimo onde reencontrou a alegria. «Encontrei um ambiente diferente, um grupo de jogadores sensacional, todos a querer a mesma coisa. Adorava a Madeira, foram grandes tempos. O Paulo [Autuori] era um treinador com ideias novas e ajudava bastante a que evoluíssemos», elogia.

O grupo tinha vários jogadores de qualidade. Além de Jorge Andrade havia Edmilson, Heitor, Gustavo, Alex Bunbury, Ademir Alcântara...

Aqui Jorge Andrade interrompe a lista. «O Ademir é que era um personagem…», atira a rir. «Quem o via parecia que era muito quietinho, mas estava sempre a meter lenha na fogueira. No campo e fora dele. Era daqueles que batia e depois ficava muito quieto como se não fosse nada com ele», acrescenta.

«Costumávamos pegar muito com o Heitor que era mais frio, não gostava nada de brincadeiras. Uma vez, num jogo em Faro, na viagem de autocarro do aeroporto para lá, viemos o caminho todo a brincar com o Heitor, a dizer-lhe que ele estava na idade de ir ao urologista, que precisava fazer o exame da próstata (risos). Ele não achava graça nenhuma. Até que o Ademir pega numa banana e dá ao Gustavo que diz ao Heitor: ‘Tá a ver o tamanho do dedo do médico??’. O autocarro desmanchou-se a rir e o Heitor só queria bater em toda a gente.»

O dia-a-dia dos jogadores rende sempre boas histórias que raramente chegam ao público. Jorge Andrade volta ao Boavista para partilhar outra que envolve Nelson Bertollazi.

«O irmão dele, o Paulo Egídio, que era um jogador de maior carreira no Brasil, jogador de seleção e tudo, esteve só um ano no Boavista. Um dia estavam uns ciganos a vender uns tapetes e foram a casa do Paulo. Pediram-lhe, julgo eu, 50 contos, uma coisa assim. Era bem caro. O Paulo baixou, baixou e comprou super baratinho. No fim disse-lhes para ir a casa do irmão, do Nelson, que ele também queria comprar. Só que não disse ao Nelson quanto pagou e ele deu mesmo os 50 contos pelos tapetes! (Risos) Quando soube depois que o Paulo tinha comprado muito abaixo ficou passado…O balneário todo riu dessa história», relembra.

«Cansei do Brasil. Fui assaltado duas vezes em dez dias»

Nos dias de hoje, Jorge Andrade vive do outro lado do mundo. É na Austrália que atende o telefone para falar com o Maisfutebol. Mudou-se para lá em 2008: «Cansei do Brasil. Fui assaltado duas vezes num espaço de dez dias e cheguei à conclusão que era hora de sair.»

«Já estava a tentar mudar porque quando fui para Portugal jogar era muito novo e tive a oportunidade de crescer a vários níveis. Quando voltei, senti que o Brasil estava parado. Não tinha evoluído nada. Os brasileiros continuavam a achar que com o seu jeitinho as coisas vão resolver-se. Mas não pode ser assim», defende.

Um amigo falou-lhe da Austrália e do Canadá. O frio fez com que decidisse que rumar a norte não era boa ideia. «Não é que na Austrália o clima seja parecido com o do Brasil, mas era melhor», sublinha, destacando ainda que tem semelhanças sobretudo pelo tamanho e diversidade étnica. «Achei que era bem mais provável um brasileiro integrar-se bem na Austrália do que na Suíça, por exemplo», acrescenta.

Sem qualquer ligação ao país mudou-se então e por lá continua, agora com 52 anos. Mata saudades do futebol jogando num torneio que é o Masters Western que o leva, inclusive, até à Tailândia. E aproveita a vida longe do país natal e do país onde viveu os «melhores anos da carreira».

A conversa longa e repleta de histórias e pormenores termina. Vale a pena contar o que Jorge Andrade tinha referido no início de tudo, ainda antes da primeira pergunta. «Estou um bocado enferrujado. Há tanto tempo que não dou uma entrevista…».

Não se notou, não se notou…

Jorge Andrade nos tempos atuais

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