DESTINOS é uma rubrica do Maisfutebol: recupera personagens e memórias dessa década marcante do futebol. Viagens carregadas de nostalgia e saudosismo, sempre com bom humor e imagens inesquecíveis. DESTINOS.
ALI HASSAN: Sporting (de 1989 a 1991); Vitória de Setúbal (1991/92); Amora (1992/93); Académico de Viseu (1993 a 1995); Torres Novas (1995/96)
A história é conhecida, o protagonista é uma novidade. O clube x identifica um futebolista em Moçambique, consegue trazê-lo para Lisboa e, para surpresa de todos, o clube y acaba por desviá-lo. Senhoras e senhores, a narrativa é real e esta aconteceu no Natal de 1988.
Ali Hassan, o melhor jogador do Moçambola-88, foi convidado para fazer testes no Benfica. Treinou duas semanas, teve um contrato de quatro anos em cima da mesa e… assinou pelo Sporting.
Neste DESTINOS fala-se desse episódio, claro, mas fala-se sobretudo de direitos humanos e da catástrofe que se abateu sobre Cabo Delgado, no norte de Moçambique. Ali Hassan integra uma ONG que tem procurado oferecer algum conforto às centenas de milhares de refugiados, vítimas da espada negra do execrável Estado Islâmico.
Depois de ter enviado algumas imagens ao Maisfutebol no final de janeiro, em plena missão, Ali Hassan encontra alguma paz na sua casa em Maputo para matar saudades com Portugal.
ALI HASSAN NO SPORTING:
. 1988/1989: 9 jogos (3º lugar) *
. 1989/1990: 11 jogos (3º lugar)
. 1990/1991: 5 jogos (3º lugar)
* chega apenas em janeiro
TOTAL: 25 jogos
Maisfutebol – Caro Ali, boa tarde. Não foi fácil conseguir a ligação, mas lá conseguimos. Como vão as coisas por aí?
Ali Hassan – Agradeço muito a oportunidade de falar sobre tudo o que vivi em Portugal. Estou aqui longe, em Moçambique, mas tenho o vosso país no coração. Tenho uma vida normal, ligada ao futebol. Continuo a procurar desafios aos 56 anos. E o meu maior desafio nesta altura é ser solidário com os meus compatriotas que vivem dias maus. Quero levar amor e carinho a uma zona que tem sofrido muito. Há gente que está a passar os dias sem saber se vai ver a noite e o amanhecer. Dou o meu melhor por eles. Sei que não é possível oferecer tudo, mas pelo menos levar algum conforto.
MF – Refere-se em concreto à região de Cabo Delgado e à guerra que por lá grassa já há alguns anos?
AH – Exatamente. Estamos em coordenação com uma grande instituição moçambicana, o Conselho Islâmico, dirigido pelo antigo pelo presidente da Comissão Nacional de Eleições. Esse senhor tem sido o mentor do apoio que estamos a dar a essas populações. Apoio alimentar, em géneros, em tudo o que é necessário. A partir do pão, à manta, o bem-estar mínimo. Estamos a tentar ajudar e apelamos à ajuda de todo o mundo. Essas gentes estão a viver momentos dramáticos, tiveram de abandonar as suas vidas, as suas casas. Há várias casas que estão a receber esses refugiados. Há 70/80 pessoas numa casa, é desumano e revoltante. É um desafio muito grande e estamos a fazer o nosso melhor, mas não chega. Um pão é sempre um pão.
MF – Pretende fazer um apelo aos políticos portugueses para que olhem com mais atenção para o que se passa em Cabo Delgado?
AH – Sim, se me permite, sim. Sinto que as imagens estão a fluir pelo mundo e que estão a tocar os governos de todos os países. Peço ao governo português para ajudar no que pode. O sofrimento deste povo está a ser insuportável. Com a ajuda de todos é possível minimizar as consequências. Há centenas de milhares de pessoas que foram obrigadas a largar as casas e a fugir. Tudo numa questão de horas, de dias. Perderam tudo. Partiram apenas com a roupa que levavam no corpo e isto é muito triste. Quando as imagens chegaram às televisões, sentimos que a opinião pública passou a perceber a dimensão do drama. Tem sido muito doloroso.
MF – Tem sido possível conciliar essa missão humanitária com a ligação ao futebol?
AH – Até há poucas semanas, sim. Durante sete anos fui o treinador na Liga Desportiva de Maputo. Tive uma reunião com o presidente, até me convidou a passar para treinador-adjunto, mas não estava muito satisfeito com o rumo do projeto. Mesmo com uma equipa cheia de miúdos talentosos, alguns a estrearem-se na primeira divisão, ainda conseguimos bons resultados e com a ambição de fazer um conjunto para ombrear com os grandes de Moçambique no futuro. A direção preferiu mudar de rumo e iniciar um novo rumo com o selecionador nacional dos sub20, o Dário Monteiro [jogador da Académica de Coimbra entre 1996 e 2005].
MF – Nesse clube há jovens com capacidade para repetir o percurso do Ali Hassan?
AH – Moçambique é um celeiro de futebolistas talentosos. As condições de trabalho é que não são as melhores e isso não permite fazer sobressair a qualidade na totalidade. O nível dos campos é mau, apesar de ter melhorado recentemente. A federação tem tentado subir a qualidade do Moçambola. Existem muitos Eusébios, Colunas, Ali Hassans, Chiquinhos Condes, Hilários, mas é preciso saber levá-los a bom porto. É preciso encontrar bom líderes e orientar a vida do jogador no pós-treino. Muitos jogadores não têm uma vida social condizente com o profissionalismo. Para haver sucesso, o jogador tem de ser identificado com 15/16 anos e acompanhado muito de perto. O Zainadine [Marítimo], o Mexer [Bordéus] e o Reinildo [Lille] são a prova recente de que há talento em Moçambique e, em concreto, na Liga Desportiva de Maputo.
MF – Que memórias tem da sua chegada ao Sporting em 1988?
AH – Sempre tive o sonho de jogar em Portugal e na Europa. No Mundial de 82, em Espanha, via as transmissões da TVE em Moçambique numa televisão com 200 pessoas à volta. Criei o meu ego e o foco passou a ser jogar nesses grandes palcos. Fui considerado o melhor jogador do Moçambola em 88 e no Natal desse ano viajei para Portugal tendo como destino o Benfica. Fui recebido pelo presidente João Santos e pelo diretor Gaspar Ramos. Estive 15 dias na Luz e o primeiro treino foi no relvado principal. Estava um frio de rachar, intenso, com chuva miúda. Nunca tinha jogado com tanto frio e com chuva, nem com chuteiras de pitões de alumínio. Tive muitas dificuldades em adaptar-me, foi o pior treino da minha vida.
MF – Quem treinou ao seu lado nesse dia?
AH – Mozer, Ricardo Gomes, Valdo, Diamantino, Lima, Magnusson, uma grande equipa, craques. Quando me viram a chutar duas ou três vezes na relva… isso tirou toda a confiança dos dirigentes do Benfica na minha contratação. ‘É este o melhor jogador moçambicano da atualidade?’ Foi um primeiro dia diabólico. Fui-me adaptando, com a ajuda do Mozer, Valdo, Vata e Abel Campos, dois angolanos, e a partir daí melhorei. Fiz ainda um treino no Jamor contra o Belenenses e o treinador Toni disse-me que ia jogar de início: ‘Joga como sabes jogar, joga como queres. Com pitões de alumínio ou sem pitões, com caneleiras ou sem caneleiras’. Eu nunca gostei de jogar com caneleiras e nessa altura não era obrigatório, mas como estava chuva e o relvado era perigoso, aconselharam-me a usar. Mesmo assim não pus caneleiras e arranquei uma grande exibição.
MF – Chegou a assinar contrato com o Benfica?
AH - O Toni e o Gaspar Ramos gostaram do que viram e ofereceram-me um contrato de quatro anos, mas nessa noite uns diretores do Sporting foram-me buscar ao Hotel Altis, onde eu estava, e acabei por assinar um contrato com o Sporting. Nessa mesma noite. A minha ingenuidade pesou nessa decisão. Não era eu, eu só queria jogar. Mas mandavam-me fazer isto e aquilo. Eu era sportinguista desde pequeno e juntei o útil ao agradável. Só peço desculpas ao Benfica pelo sucedido e sei que foi a minha ingenuidade a levar-me a tomar essa decisão.
MF – E o que encontrou no Sporting? Arrependeu-se da escolha?
AH - O presidente era o falecido Jorge Gonçalves. O clube vivia momentos atribulados. Aliás, eu nunca vi o Sporting a ter tanta estabilidade como está a ter esta época. Teve sempre plantéis bons, equilibrados, com jogadores de qualidade, mas depois havia sempre algum problema na organização do clube. E isso influenciava o rendimento desportivo. Se calhar passavam ao nosso lado, mas afetavam aquilo que nos rodeava.
MF – O Ali Hassan acabou por nunca se impor totalmente como titular. Tinha valor para jogar no Sporting?
AH - Nos meus três anos íamos bem até ao Natal e depois caíamos na segunda volta. Foi sempre assim. Acabávamos no terceiro lugar. Felizmente, esta época estamos a ver outra coisa. No meu tempo não foi assim. Eu só queria jogar, não sabia que havia outras coisas por trás do futebol e apercebi-me que o futebol era uma selva. Eu vinha de uma mata doméstica e fui engolido pelos animais da selva. Acabei por ser um jogador irrelevante, como outro qualquer, e não deixei a minha marca, apesar de ter deixado a minha qualidade em alguns momentos. Acho que tinha nível para jogar em qualquer equipa. Passou muita gente pelo Sporting que fez mal ao clube, mas a entidade estará sempre no meu coração.
MF – Qual foi o treinador que melhor o tratou no Sporting?
AH – O primeiro treinador foi o Pedro Rocha, o uruguaio. Depois veio o Manuel José e devo a ele o algum brilhantismo que tive no clube. Tiro-lhe o chapéu pelo sucesso que teve no Egito. Levou o Al Ahly a patamares fantásticos. Com o Manuel José, as pessoas conseguiram ver algum do valor do Ali Hassan e foi com ele que senti que podia ser feliz. Foi sol de pouca dura, o Manuel José não ficou muito tempo e eu acabei por pagar um pouco pela saída dele. Depois ainda trabalhei com o Raul Águas e com o Marinho Peres. Com o Marinho fui jogando.
MF – Na segunda época ainda fez vários jogos a titular.
AH - No início das pré-épocas era sempre eu e mais dez. Quando começava o campeonato, o Ali Hassan era preterido por ser estrangeiro e só podiam jogar dois estrangeiros de início. O Sporting tinha seis e eu era o mais sacrificado. Sabia que podia jogar nessa equipa, mas havia coisas por trás. Só mais tarde fui sabendo do que se passava. Soube que teria de ter tirado do meu salário e pagar a determinadas pessoas para poder jogar.
MF – Quem eram essas pessoas?
AH – Não posso dizer os nomes porque não tenho provas físicas.
MF – O Ali Hassan esteve nos dois jogos contra o Nápoles do saudoso Diego Armando Maradona.
AH – É verdade, que orgulho. Tenho até uma foto ao lado do Maradona. Provei nesses jogos que podia jogar tranquilamente em alguma equipa. Por isso digo que o Manuel José me marcou. Conhecia ao detalhe as minhas qualidades. Se calhar havia alguma pressão sobre ele para colocar a jogar fulano ou sicrano. Durante os treinos semanais, o treinador dava a indicação de que eu ia jogar. No dia do jogo, muitas vezes nem para o banco ia. Na primeira época até pedi para sair e rodar noutro clube, mas os dirigentes e os treinadores nunca aceitaram isso. Diziam que eu fazia parte do plantel e que jogaria regularmente. Sempre trabalhei bem, sempre criei bom ambiente e nunca arranjei problemas com ninguém. O que eu sentia, isso é verdade, era falta de ritmo quando entrava em campo. Nunca tive continuidade. Eu queria ter jogado sempre e dar mais ao Sporting. A vontade dos treinadores era diferente.
MF – O que gostava de dizer às pessoas que trabalham em Alvalade e lutam pelo título?
AH – Bem, primeiro quero desejar boa sorte ao Sporting. Estou orgulhoso da equipa do Ruben Amorim e penso que podemos mesmo ser campeões. Ele tem feito um trabalho espetacular. Peço que a malta sportinguista apoie a equipa e lhe faça chegar o carinho que ela merece, nem que seja através das redes sociais. Força, Sporting, este ano é que vai ser!
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120. Raudnei: «O técnico não me queria, mas o meu agente convenceu o presidente do Porto»
121. Duda: «Sobrevivi a uma queda de sete metros e esmaguei os nervos da cara»
122. Valdo: «O papel dizia Sport, Lisboa e Benfica. 'Ei, três clubes atrás de mim'»
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127. Mário: «Fui ganhar mais dinheiro no Estrela do que ganhava no Sporting»
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